O FARSANTE

O sol despontava há algumas horas e o pequeno sitiante João Félix Pinto, como de costume, também já estava em plena atividade, no labor de sua faina diária. Enquanto fazia suas obrigações, de tão corriqueiras que eram iam acontecendo como se num plano automatizado. O Sr. João ia pensando na vida. Estava naquele pedaço de chão que herdara de seus pais, que foram herdeiros, etc. Ali nasceu e foi criado, aprendeu com o pai a cuidar da terra, da roça, do trato e do manejo com os animais, ofício do campo, criação, plantação. Nunca estudou, não havia tempo e nem colégio por perto,na época. Cresceu, virou homem, os irmãos se foram, os pais envelheceram, morreram, deixando-lhe o legado da continuidade, aquela pequena propriedade incrustada ali na Comarca de Granja, próxima ao pé da serra do Tabuleiro. Eram poucos hectares de terra, um sítio, como se diz na região, mas era dali que o Sr. João tirava a vida.

Casara com uma moça também ali das vizinhanças, formara família, prole numerosa, dezoito filho entre homens e mulheres, dos quais três morreram. Os quinze sobreviventes, a maioria estava criado, graças a Deus como se diz.. Alguns casados, moravam ali nas redondezas, outros migraram para os grandes centros em busca de vida melhor. Tinha em São Paulo, no Pará, no Maranhão, Piauí, Fortaleza, etc. De quando em vez, mandavam notícias ou vinham esporadicamente. Restava ainda sob a sua custódia, um rapazote de treze anos – Benedito – e uma moçoila de quinze anos – Emilia – juntamente com a esposa, Dona Aldenora, senhora bonachona de seus sessenta e cinco anos, afeita ao trabalho, boa mãe, boa esposa, companheira de todas as horas, ali, firme, ao seu lado. Fazia de tudo, desde cuidar de casa, bem como ajudava nas obrigações da propriedade.

Senhor João, embora já aposentado, único pormenor que o fazia deslocar-se uma vez por mês até a cidade, era o recebimento dos proventos, mas era um pé lá, o outro no sítio, pois ali era sua vida, e tudo que ele mais amava. Naquele dia, 26 de setembro de 1985, uma sexta-feira, senhor João olhou no relógio, era quase 10:00hs da manhã. – Nossa como o tempo passa! Pensou. Acordara bem cedinho, como de costume, e o sol já estava a pino. Não parara um instante sequer, e muito havia ainda que fazer. Era colocar comida para os animais, galinhas, patos, cabritos e umas poucas vaquinhas lá no curral. Só mesmo para garantir o leite, gostava de dizer. Era uma cerca que precisava de conserto, era ter que arranjar uns caboclos para arrancar a roça de mandioca. Estava chegando à época da farinhada. Tinha que dar uma geral na casa de farinha. Era isto, era aquilo. Senhor João ia de um lado para o outro, no que era ajudado pelo seu filho Benedito, Emilia e Dona Aldenora. No sítio todos trabalhavam, sabiam de suas responsabilidades e não fugiam delas.

Apesar de seus 68 anos, era ainda um homem forte, disposto, embora sentisse o peso da idade, mas isso não o impedia de realizar todas as suas tarefas. Homem afeito ao trabalho, amava a terra, pois aprendera a tirar dela o seu sustento desde que nascera. Ali estava, os outros se foram, mas ele dizia pra todos, que queria ser enterrado ali, no chão sagrado em que nascera.

Aproximava-se um verão caipora, o vento forte de setembro já chegava à tarde com a viração. Os cajueiros estavam em flor, e recendia no ar aquele cheiro silvestre que senhor João tanto gostava.

De repente, senhor João tem seus pensamentos interrompidos. Um alvoroço quebrou a rotina, vinha lá do portão de entrada do sítio. Senhor João dirige-se para o local quando é interpelado pelo filho Benedito, que vem correndo ao seu encontro: - Paiê! Paiê! Tem um homem lá na cancela (portão de entrada de sítio) – Que homem é esse, filho? O que ele quer? – Pergunta-lhe o pai. – Sei não, senhor! – Responde. – Vamos ver! A cachorrada (vira-latas) – faz barulho, demonstrando valentia na defesa de seu território. Senhor João ao chegar, ralha com a matilha: Cachorro! Deita! A cachorrada mete o focinho entre as pernas, gane e se afasta. O vira lata é muito inteligente, recua, mas fica à espreita, à espera da ordem do dono. Achegando-se ao portão, senhor João destrava a porteira, à sua frente encontra-se um rapaz de mais ou menos 25 anos, alto, magro, branco, cabelos pretos penteados para trás, vestido socialmente, sapatos de couro, trazendo nas mãos uma maleta. A princípio, senhor João até pensou que fosse um desses vendedores ambulantes que se danam no oco do mundo a vender todo tipo de quinquilharias. Antes eram difíceis de aparecerem, agora com horário, transportes, todos os dias passando ali na porta, apareciam cada vez com maior freqüência: - Bom dia! Saudou senhor João – Bom dia! - respondeu o dito cujo, e foi logo emendando: Aqui é que mora o senhor João? Que tem uma garota chamada Emilia? Não é aqui, o sítio São Félix? – É aqui mesmo, moço! Vamos entrar. Quem é o senhor?

Enquanto entravam e se dirigiam para a casa, o rapaz retrucou: - O senhor não me conhece pessoalmente, mas com certeza vai saber quem sou eu pelo nome... Eu sou o “Inácio Santos”, lá da Rádio União. Aquele que faz um programa naquela emissora, todas as manhãs. Senhor João levou alguns minutos para digerir a informação, até que ao entender, seu rosto iluminou-se: - Não é possível! Seu Inácio Santos! Que prazer em tê-lo na minha humilde casa. Vamos, entre! Ato contínuo foi gritando: - Emilia, Denora! Venham cá! Benedito acompanhava tudo calado. As duas correm ao chamado: - Olhem! Vejam quem está aqui! Seu Inácio Santos da Rádio União. Vejam! As duas parecem não acreditar. Dona Aldenora toma iniciativa, aperta a mão do indivíduo: - Prazer, Aldenora, sua criada. Desculpa estar assim. É que eu estava dando milho para os bichos. – Tem nada não! O prazer é meu, senhora. Disse o mesmo. A mãe dá um cutucão na filha, que permanece aparvalhada, boquiaberta. – Menina, deixa de ser matuta! Fala com o homem, parece que perdeu a voz, diz a mãe. Emilia aperta a mão do elemento, meio envergonhada: - Desculpa-me, seu Inácio, é um prazer conhecê-lo. – Oi, Emília! - disse o rapaz. O prazer é meu! Sempre recebo suas cartinhas. Emília, sempre envergonhada: - Desculpa a letra, é que eu não sei escrever direito. Seu João mandou todo mundo sentar-se à sala, e entabulou a conversa, na qual, o elemento afirma categoricamente em ser o citado radialista, e que resolveu conhecer a região, passar um final de semana para descansar e havia escolhido o sítio de seu João, para o referido intento.

Não é preciso dizer que seu João e família, se sentiram honrados pela escolha, visto que o rádio era dos poucos luxos que possuíam, uma das poucas formas de diversão e entretenimento, e o programa pela manhã era de grande audiência na região, sendo seu locutor, uma espécie de ídolo para os ouvintes. Emília era fã do programa, vivia mandando cartinhas, pedindo músicas e, claro, pedindo para o locutor divulgar seu nome, dos pais e do sítio.

Dá para sentir a euforia e honra, que a família estava sentindo em poder hospedar na sua casa tal pessoa. Tanto é que seu João resolveu promover uma espécie de feriado especial no Sitio São Félix, pois a ocasião era merecedora. Ficou a fazer sala ao ilustre convidado que, só para detalhar, exibia no bolso da camisa um colorido crachá, com foto, nome da emissora, etc. Dona Aldenora e Emilia, se esmeraram em dar o melhor ao hóspede. No terreiro, a mais gorda galinha foi sacrificada. No alpendre, uma rede daquelas brancas, de varandas, foi atada. Cafezinho, doce de leite, afagos e mimos, ou seja, como só quem sabe e conhece até que ponto vai a gentileza da hospitalidade do homem sertanejo. Diz-se que o convidado estava no paraíso, com sombra e água fresca, tratado a pão-de-ló.

O referido convidado não se fazia de rogado, era a simpatia em pessoa. Assim passou o resto da sexta, o sábado, e já era domingo, pois de acordo com o mesmo só voltaria segunda-feira no horário (condução). Tudo bem, a família ofereceu guarida quantos dias ele quisesse. Mas como não há mal que vença, nem bem que sempre dure, no domingo uma das filhas do seu João, chamada Fátima, foi visitá-lo. Esta era uma daquelas que casou com um rapaz da região, e morava a algumas jardas de distância. Ao chegar, foi recebida pelo pai. Ao tomar-lhe a bênção, foi logo colocando a filha a par das novidades: - Ah, filha! Nem lhe conto a novidade, disse o pai. – Que novidade é essa, pai? A vaca deu cria? Perguntou Fátima. – Qual nada! Desde sexta-feira, estamos com uma visita aqui em casa. Adivinhe quem é? Silêncio. Você não vai adivinhar! É o seu Inácio Santos, locutor da Rádio União. A mulher pensou e disse: - Cadê o Inácio Santos? Está aí! Respondeu seu João. – Entra filha! Venha que vou lhe mostrar. Já era quase 9:00hs da manhã de domingo. O referido estava deitado, depois de haver tomado um baita café com cuscuz, tapioca, ovos mexidos e outras guloseimas, isto enquanto aguardava uma carneirada, pois seu João havia abatido um carneiro cevado especialmente para o almoço domingueiro tão especial. Fátima sempre ia à cidade, e comumente levava as cartas de Emilia, e as suas, já que também era ouvinte e conhecia pessoalmente o locutor.

O finório, que de nada desconfiava, estava confortavelmente deitado na rede branca de varandas a balançar-se, esperando o almoço. Fátima chegou à borda da rede, tendo ao lado o pai. O malandro fez menção de levantar-se. – Não, seu Inácio, não se levante. - Esta é minha filha Fátima, ela mora aqui perto, veio me visitar. Todo malandro é persuasivo e desconfiado. Pela expressão de Fátima, o meliante, com certeza sentiu-se descoberto. Levantou-se de um salto. Empalideceu. Tremiam-lhe as mãos, um suor frio perpassou-lhe a fronte, a voz quando saiu, foi uma espécie de balbucio: - Eu... eu... como vai senhora. Eu... eu... sou... eu. Fátima era desse tipo de mulher que não faz muitas delongas, vociferou: - Papai, que Inácio Santos que nada! Esse nunca foi, eu o conheço pessoalmente, não está nem com quinze dias estive com o mesmo, lá em seu estúdio, na Rádio. Não tem nada a ver com ele. Este é um farsante!

Fátima, indignada, falava em voz alta, o que chamou a atenção de todos que foram chegando. Dona Aldenora, Emilia, Benedito, juntaram-se ao seu João e Fátima.

O dito cujo, vendo-se desmascarado, não teve outro remédio senão confessar a verdade, e depois de ouvir poucas e boas da família, resolveram dispensá-lo, colocando-o para fora de sua propriedade.

Na segunda-feira, recebi seu João e família no meu programa. Contaram-me essa história, indignados e aviltados, com justa razão. Coloquei-os no ar, entrevistei as vítimas e, por incrível que pareça, no decorrer da semana, outras famílias humildes e bem intencionadas, como a de seu João, telefonaram, escreveram, dizendo já terem sido vítimas daquele farsante. Orientei para que ninguém fosse recebido em meu nome. Pedi providências à polícia. Graças a Deus este golpe foi frustrado. Depois com o passar do tempo, esse elemento aplicou outros golpes de estelionato em outras pessoas. Atendia pela alcunha de “sujeira”, apelido que diz tudo. Sujeira foi preso diversas vezes e desapareceu da região. Talvez tenha sido tragado pelas sujeiras de sua própria vida.

Ignácio Santos.

ignacio santos
Enviado por ignacio santos em 25/06/2016
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