MOLHADO NA ZONA NORTE OU COMBRAY ÍNTIMA


 





 
A bordo de um táxi, eu conversava com o taxista. Seguindo a praxe, iniciamos a parlamentação falando sobre as condições do tempo do dia. Então ele me disse que a Zona Norte de Goiânia é "mais molhada" que as demais regiões da cidade. De fato, eu também sinto e penso isso. Essa é das regiões da cidade onde moro (jamais digo "minha Cidade" ou "o meu Brasil", pois não sou possessivo no âmbito geográfico, nem no âmbito pronominal) a mais úmida, esvervedeada e enlameada área da cidade. No seu oposto, considero a Zona Sul, a saída para São Paulo, a mais antropizada, devido o esparramento da Cidade de Aparecida de Goiânia pelo cerrado, a mais seca e até árida região da cidade: com um quê de Saaras, Mojavs, Negevs e Atacamas espirituais. Penso a região Norte de Goiânia como úmida e fria. Enxarcada e gélida até o osso. Aragem e verde frescura. Curiosamente essa é a região menos "privilegiada" (não gosto dessa expressão, contudo ele é efetiva e bastante descritiva da nossa Índia social) da cidade. Nela montaram uma loja da rede Carrefour, que não aguentou muito tempo e fechou as portas. Não há ali gente com grana disposta a mergulhar-se em ímpeto consumista. Grana não há nem para o básico que mantém o saco de pé. Recentemente, perto dali, montaram o "maior shopping da América Latina" (o Brasil deve ter uns cincoenta "maiores shoppings da América Latina", mas não faz diferença, pois shoppings são como clones, meras réplicas). É o "Passeio das águas (veja o nome "águas"... Próprias da molhadez da região). Quando será que ele vai fechar e se transformar no "maior galpão vazio e inútil da América Latina"? Na zona norte tem poucas fábricas, elas preferem a BR-!53, a 060 e a saída de Aparecida de Goiânia. Ali só as fábricas da Unilever (Arisco), da Assolan e da Ambev (que propala a ideia de que o esgoto que joga no Meia Ponte é mais limpo que as águas do próprio rio). Sempre tem água em tudo. Acho que o taxista tinha suas razões geográficas e ambientais para pensar a cidade do modo como pensava. É no Norte, Nordeste e Noroeste da da cidade que vêm as águas que irrigam e abastecem a cidade, pelo Ribeirão Anicuns, Rio Meia Ponte e Ribeirão João Leite. Além disso, situa-se entre Goiânia e Anápolis, pela saída Nordeste da cidade,o Parque Ecológico de Goiânia (que na verdade pertence ao Município de Terezópolis de Goiás), além do imenso espelho d'água do Lago do Ribeirão João Leite. O Norte da cidade é de fato mais aquático, úmido, verde e fresco. E tem mais uma razão, mais complicada de explicar, até para os daqui. Acontece que Goiânia se situa no limite entre a região dominante de cerrado e uma imensa região de Mata Atlântica ilhada em Goiás, que se chama Mato Grosso Goiano. É uma imensa região originalmente arborizada, úmida, irrigada e sombria área de mata, hoje muito devastada, mas que ainda mantém no clima a memória úmida do que foi no passado. Ele se inicia ao Norte de Goiânia e prossegue nessa direção cardeal por aproximadamente 150 km. Carmo Bernardes, um romancista quase intuitivo, patureba por nascimento mas goiano por adoção e literatice, ambientou o romance "Quarto Crescente" (parte de uma tetralogia das fases lua, que ficou sem um dos quartos, após a morte do autor). É um romance úmido, de brejo, de pé na lama e de vermes na barriga das crianças. É o romance do debravamento e desbastamento que se fez sob as imensas sombras das árvores da região. Sim o Norte é mais "molhado". Quanto a mim, originalmente úmido, enxarcado e enlameado, pois que nascido no Vale do São Patrício, a área "mais molhada" do Mato Grosso Goiano, tenho outras razões para pensar do mesmo modo daquele taxista, também ele bastante molhado. Cheguei até Goiânia pela entrada da Zona Norte, a chamada "saída de Inhumas". Aqui cheguei em fevereiro de 1987, e chovia com o Pedrão derramando baldes e bacias de água do céu "anuviado", tudo estava enchardo e enlameado. Eu olhava pela janela do ônibus tentando adivinhar o skyline da cidade, que mal se distinguia em meio ao temporal. Não é, nem foi, só isso. Eu vim molhado desde o berço, nasci em um dia chuvoso de setembro, pois segundo minha mãe ela tinha comido na própria panela no dia de seu casamento (não sei como ela explica o fato de que dois de seus filhos teram nascido durante o seco mês de junho). Vim com os pés cheios de lama ancestral e pré-histórica. Hoje, quando digo "vou na casa de não sei quem lá no Recanto do Bosque!", de pronto sinto-me frio e úmido. É remissão, uma evocação, no estilo da "xícara de chá" onde Marcel Proust encharcava suas madeleines na casa de sua mãe. É também como os arquetipos de Carl Jung, arquetipos que involuntariamente remontam realidades ancestrais, dos modos como fazíamos ritos quando movávamos em cavernas grotescas e primais de nossa última Era do Gelo. É nosso Paleolítico Superior espiritual. Nesse momento, acabei de olhar o mapa de Goiânia no Google Maps, e comecei a sentir frio, "molhado", verde, primitivo, pertencente a um mundo que não possuía redes mundiais, nem computadores pessoais. Nosso íntimo segue intuitivamente esses motes que reconstituem nossas mais verdadeiras realidades, que estão perdidas nos desvãos, grotas e dobras de nossa memória. Perdidas e presentes para "sempre" Mesmo não residindo atualmente na Zona Norte de Goiânia, sinto-me molhado em Itapuranga, minha Combray íntima.

Desculpem-me pelo "tamanho" do texto, mas são assim os processos de rememoração, reconstituímos e intuímos cidades a partir de uma colher de chá.

Catalão, 23 de junho de 2016
José Eustáquio Ribeiro