Ilustração: Banner de São João (Fonte: misterfestas.com.br)


O terço do Dona Bem


SUMÁRIO
 

Introdução
- Crônica: O terço da Dona Bem
- Vocabulário de Aguinhas
- Notas
- Referência


Introdução

No meu livro de memórias intitulado MENINO-SERELEPE, narro como eram os dias de São João de minha infância, na casa do meu tio Messias Lobo, no bairro Vila Nova , em Lambari, MG.


É o que vai abaixo, a propósito deste 24 de junho de 2016.

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O terço do Dona Bem


Em Minas pode faltar de quase tudo, mas não falta festa junina — nem terço. E as festas juninas promovidas pelo tio Messias eram conhecidas de toda Aguinhas. 

Houve um tempo em que o tio Messias deu de beber sem parar. Vó Cema explicou que ele tava começando a trabalhar de pedreiro, ganhava mal, tinha um bar que num dava certo, um monte de filhos pra criar, sem nunca ter o bastante pra tanta boca e a vida só ficando enrolada e o meu tio cada vez mais desacoçoado. Vó rezava, dava conselho, ficava brava, fazia sermão. Nada, tio num largava da pinga.

Um dia vó falou: — Fiz promessa, ocê agora, Messias, vai largar da bebida. Tio chorou muito, tocado pela fé da minha vó, mas continuou invernado na cachaça. Um dia tio Messias falou pra vó: Mãe, vou largar da bebida. Juro que não bebo mais! E vou cumprir sua promessa. A promessa era de fazer festa junina, convidar toda a Vila Nova, hastear mastro de São João, fazer os arcos de bambus, botar festão de flores no barranco, embandeirar a rua, dependurar lanternas, fazer fogueira, soltar foguete e rezar o terço, que esse não podia ficar de fora.

Todomundo ajudava na comedoria: canjica, cachorro-quente, pipoca, pé-de-moleque, cocada. Todomundo servia bebidas: groselha, guaraná, água fresquinha do Parque. Quentão não, que esse tio Messias cortou, como cortou, pro resto da sua vida, qualquer tipo de bebida alcoólica. Mas, vez por outra, no Natal, tomava um cálice de Folha de Figo.



Pra criançada, além dos traques, estrelinhas e fósforos de cor, mais espetáculo: Mingo soltava balão e a gente fica lá assistindo, vendo o bicho subir, ganhar altura, ficar bojando no ar e depois cair lá pros lado da pedreira. Tio falava: corre lá, Mingo, não me deixa pegar fogo no mato do Djalma. E Mingo zunia atrás do morrão de estopa que fazia subir o artefato. Tio Messias acendia a fogueira e ficava tomando conta, assando batata-doce, milho verde, que a meninada queria se acercar muito e o tio não deixava. Não brinca com fogo que ocês vão mijar na cama, ele dizia. E nada da gente parar. Sai de perto, arreda um pouco, senão alguém acaba sapecado! ele zangava. 

( “Ah, se o tio desse uma distraidinha, eu era o primeiro da fila a saltar por cima da bruta, que o bote já estava armado.” )

 

 
Guima, nos tempos de festa de Sao João na Vila Nova


Na hora de levantar o mastro, tio Messias soltava foguete canhão, soltava foguete colorido — eu só escutando e apreciando a beleza. Soltava o de para-quedinha — e eu voava atrás pra pegar, sebo nas canelas por sobre o leito da linha férrea que nem uma faísca e sempre chegava primeiro que os outros meninos, que correr era comigo mesmo. Mentira? Que nada! Busca-pé que é busca-pé eu nunca cheguei a pegar não, mas ziguezagueava atrás e chegava a relar a mão neles, ah, isso eu chegava!

Por essa época, a minha turma da Vila Nova já era das mais graúdas: os filhos do tio Messias, da tia Sara, do tio Rubens: Berê, Cleonice, Verinho, Rubinho, Beta, Lúcia, Cida. As filhas do João da Mariaça, os filhos menores do Bolachinha, os filhos da dona Leontina — e mais um bando da Rua de Cima, outro bando da Rua de Baixo, um sem conta de criancice, todos lá na festa junina.

E foi no terço, puxado no jeito pela dona Bem, frente a uma mesa cheia de imagens, flores e velas acesas, cuidadosamente arranjada pela tia Elisa, e que era acompanhado fervorosamente pela famiagem dos Gentil Lobo e pela comunidade da Vila Nova, que eu olhei de lado e bati com os olhos de uma menininha loura de cabelo curto, de vestido caipira, cara pintada. Balancei, tremi, desconcertei. Me voltava toda hora pra olhar de novo. Era Vilminha. Mas ela nem olhou pra mim.

 

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Notas

 Tia Ia, ainda viva, com mais de 100 anos - (Fonte: Jornal Serra das Águas - Josy Astério)


(1) Além da Dona Bem, na Vila Nova do meu tempo, rezavam também o terço a Dona Clara e a Tia Ia.
(2) 
Naqueles tempos os balões de São João eram comuns. Hoje a prática é vedada.

(3) Conforme legislação municipal, é vedada em Lambari, MG a soltura de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos que causem barulho.


Vocabulário de Aguinhas

Invernar:  Demorar-se em alguma coisa ou lugar além do tempo devido.
Festão:  Ramalhete de flores e folhagens. 
Morrão de estopa: Mecha de estopa com que se acende o balão. 


Referência

Esta narrativa faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960.​
   O livro é de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.

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