À PORTA DO ARCANJO DA PRAÇA

À PORTA DO ARCANJO DA PRAÇA

Crônica

Eu vinha caminhando por aqueles caminhos que nunca são aleatórios, a atentamente observar o todo tão belo e tão bem cuidado.

Ao lado da praça, um extenso lago de águas cristalinas e frias refletia no seu espelho d’água uma natureza rica e diversa, aonde o colorido das espécimes exuberantes desenhavam suas fortes cores em formas exóticas e que ali conviviam em perfeita harmonia simbiótica.

A névoa descia forte a acarinhar as águas balouçantes daquele paraíso.

De repente, algo ainda de longe, eu avistei uma porta entre várias casinhas ajeitadas, algo que me chamou a atenção pela arte esculpida em madeira envelhecida.

Tive um ímpeto de fotografá-la.

Dei um click e enquanto me aproximava eu o enxerguei ali ao lado, ofuscado pela neblina que descia dentre as araucárias esvaecidas e que se misturava à fumaça que subia da sua bebida costumeira; barba por fazer, olhos expressivos, cabelos embranquecidos que tocavam seus ombros, algumas frestas na pele vivida; ali parado a degustar um chimarrão que exalava calor, com os olhos fixados ao nada.

Meu chamado o trouxe à sua realidade.

“Senhor, aqui moram pessoas?” lhe gritei de onde eu estava.

“Não, aqui é um museu de cultura”, me respondeu ele com um espanhol aportuguesado, já abrindo a porta que tanto me encantara.

Tratava-se dum artesão da madeira, do ferro e do bronze, que logo me apresentou os personagens das suas últimas esculturas ainda em andamento, o Sancho Pança e o Dom Quixote de La Mancha, os fortes personagens de Cervantes dos quais me falou com um conhecimento íntimo de impressionar; ali também alçava voo a figura mitológica do Pegásus e várias outras mandalas em pratos adornavam as paredes, feitas com perfeição de encantar nossos olhos.

“Posso fotografá-las?”-perguntei.

Ao que me respondeu que seria uma ação que o homenagearia. Aproveitei seu alvará e ali senti algo diferente.

Ele, um senhor Urugaio de berço, brasileiro de coração, em breve biografia me fez entender se tratar dum viajante do mundo, peregrino da arte e do sentimento, alguém que observa o todo com cuidado para rerpoduzi-lo em esculturas lapidadas pela emoção.

Escolhera aquele lugar , sempre e também provisório, para o seu Atelier.

“Também faço poemas”- me disse ele, todo animado.

Aquela confissão me fez emocionar porque, depois de lhe dizer empolgadamente que também rabiscava versos, percebi seus olhos lacrimejarem. Ali senti claramente que o tema do seu perene verso era: a solidão.

Então ele me disse:”vou lhe recitar um poema meu, posso?”.

Eu o ouvi atentamente na sua dicção diferente e entendi que seu poema se iniciava com " tempo", e discursava dos amores perdidos, de família e de fé e posso aqui registrar que os últimos versos eram assim grafados: ”e no final de tudo sei que Deus me abrirá sua porta porque Ele sabe que sou bom”.

Ato continuo me pediu a recitação dum poema meu.

Em breve relato eu lhe disse que não tinha por hábito decorá-los porque poemas são obras abertas da vida, e nos é impossível decorar o passado e/ou adivinhar o próximo ato.

E havemos de esquecer alguns versos...

Mas lhe arrisquei um poeminha meu, que de súbito me lembrei ali.

“os caminhos por aonde andei,

nada sabem de mim,

mas tudo deveras eu sei ...

dos lugares por aonde eu passei”

mavi 2005

Ele me lançou um sorriso, rolou uma lágrima incontida, abortada, disfarçada e me orientou:

”se quiser fazer mais poemas desça a próxima rua e vire a primeira à direita. Ali, verá uma natureza que já nasceu poesia."

Na saída, num forte aperto de mãos, ele me revelou seu nome.

Foi assim que, ali na praça, eu e Miguel, já amigos na metafísica, nos despedimos com um “até breve”, aquele próprio dos encontros atemporais, já que o personagem principal da praça se tratava dum arcanjo peregrino, encantado e inconformado no seu lado poeta, e que, com asas próprias, também sobrevoa o mundo de carona, nas asas dos versos em repentes...