PERSONAGENS DE UMA OBRA
Personagens de uma obra: Pato Branco
Uma obra não apenas feita de um batalhão de gente trabalhando freneticamente para cumprir o cronograma e entregar o empreendimento pronto. Como todo aglomerado humano, é uma grande reunião de indivíduos que possuem em comum o local de trabalho, muitas vezes longe da família, com cobranças diárias, chefes exigentes. A maioria dos funcionários mora em alojamentos, os encarregados e engenheiros têm direito a acomodações melhores. Os trabalhadores não são meras ferramentas para construção. São pessoas que, como todos nós, possuímos história, família, filhos, dramas, sonhos, etc. A riqueza e variedade de pessoas que encontramos ao longo do “trecho” (nome dado ao conjunto de obras que se localizam em regiões fora da cidade do funcionário, estar no trecho é trabalhar longe de casa) são muito grandes. Normalmente são pessoas que adoram trabalhar em obras e pegam pesado no trabalho. É um modo de vida, “ ser do trecho” é uma espécie de vício. Muitas vezes reencontramos pessoas que trabalharam anos atrás em outra obra e local. Inúmeras vêzes, ao longo da minha atividade, ocorreram esses reencontros.
Durante os últimos tres anos do curso de engenharia (1970 a 1972), trabalhei nas obras de construção da Estação Rodoferroviária de Curitiba, como Inspetor de Obras da Prefeitura de Curitiba. Foi uma experiência marcante, na qual adquiri minhas primeiras experiências em grandes obras de engenharia civil. A Construtora Pussoli, contratada para executar a obra, além de contratar trabalhadores no mercado, participava de um programa de ressocialização de detentos com bom comportamento no Presídio do Ahú, hoje desativado e demolido parcialmente em 2012.
Concluí o curso, trabalhei em várias obras e, em 1989, trabalhando na Contrutora Lix da Cunha, fui Gerente de Produção das obras de construção da Fábrica de Papel Inpacel, empreendimento do grupo Bamerindus, em Arapotí-PR. Havia mais de 2.000 trabalhadores na obra e eu era o chefe de diversos engenheiros , estagiários, mestres de obras, encarregados, etc. O encarregado de terraplenagem era uma das figuras mais respeitadas da obra. Muito brabo e cioso do seu trabalho, chamava-se Albino, nome que poucos sabiam, pois era o Pato Branco.
Cego de um olho, um dos braços mal soldado depois de uma fratura, uma perna mais curta que outra devido a um acidente, obeso, Pato Branco era muito ativo. Todos os trabalhos de sua responsabilidade eram bem executados e ele “brigava” para que tudo saísse nos prazos. Eu cuidava pessoalmente da terraplenagem e fomos tendo uma relação bem legal. Com o tempo, Pato Branco só fazia serviços, mesmo para os outros engenheiros, se o mesmo fosse autorizado pelo “Dr. Paulo Mearim”. Caso contrário, ele mandava falarem comigo. Isso era motivo de muitas brincadeiras.
Aos poucos fomos aos conhecendo e Pato Branco me passava a sua história de vida. Havia trabalhado em tubulões (fundações profundas cuja execução era manual e de grande risco de soterramentos) havia quebrado o braço e a perna nesse trabalho. Em um soterramento, ele subiu a escada após outros trabalhadores e foi o último a se salvar. Sua perna se quebrou próximo ao pé devido o sujeito que vinha após ele se agarrar nela. O cara e os que vinham abaixo morreram. Sua perna havia quebrado devido ao desespero do seu colega.
Um dia Pato Branco falou:”-O senhor trabalhou na construção da Rodoferroviária de Curitiba.”. Surpreso, eu quis saber o motivo dessa afirmação. Ele me disse que havia trabalhado como armador e informou: “- Naquela época eu estava hospedado na pensão do Ahú e lembro bem que o senhor era da Prefeitura.”. Havia sido um dos presos que trabalhara na obra e cumprido uma pena de sete ou oito anos, liberado por bom comportamento. Eu quis saber qual motivo de sua condenação. E ele me contou naquele linguajar se peão de obra:
“- Uns dias depois de fazer 18 anos, lá em Pato Branco, eu e um colega fomos detidos por dois policiais. Eu nunca bebi e nem fumei. Como eu estava sem documentos, fui levado para um local distante da cidade e apanhei muito para confessar crimes que nem havia ouvido falar. Como era conhecido na cidade, eles desistiram e, quando estavam saindo, pedi que me levasem de volta, pois era de noite e longe da cidade. Um dos guardas, famoso por sua ruindade, voltou e me bateu com a coronha do revolver no olho. Fiquei cego, pois foi um ferimento profundo. Passei a andar com um revolver calibre 22 , meu pai sempre aconselhando não me vingar. Tempos depois, estava na padaria tomando um copo de leite, escuto a voz do policial. conversando com um colega. Os dois estavam sentados em uma mesa atrás de mim. Tirei o revolver da cintura, me virei e perguntei se ele se lembrava de mim. Não deu tempo de nenhuma reação. Atirei e acertei na testa. Falam que 22 não mata. Mata sim, engenheiro Paulo. Fui preso, paguei minha pena e hoje cuido do meu pai, lá em Pato Branco, que mora comigo. Nunca mais tive problemas com a justiça.”
Paulo Miorim
21/06/2016