“VOLTA TODO MUNDO! O HOMI TÁ VIVO!”

Algumas horas depois do almoço, meu pai dá a notícia, assim, do nada:

- Negada, o Potó papocou!

Jeitinho mais descontraído de anunciar a morte de um indivíduo como esse, eu nunca vi. E é porque, ao longo de minha vida, tenho escutado muitas formas de dar uma notícia dessas, tão trágica: “fulano fez a viagem dele”; “bateu as botas”; “partiu desta para uma melhor”; “vestiu o paletó de madeira”. E, claro, lembrei-me do grande Suassuna, que lindamente nos diz, para tratar dessa fatídica partida: “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável [...]”.

Processado tudo isso em minha mente, volto-me para meu pai e pergunto:

- Quem é Potó?

- O Potó, menina, fi do Raimundão!

Lembrei! Raimundão, meses atrás, era meu vizinho. E Potó, seu filho, me cumprimentava pela manhã, quando eu saía para trabalhar e o encontrava na calçada. Mas eu sequer sabia desse apelido... tão raro. Imagino que deve haver uma história bem interessante por trás disso tudo.

- Valha! Morreu de quê?

- Num sei, deve ter sido as cachaça dele.

Após o curto diálogo, seguem-se as conversas sobre a morte, vêm as lembranças, cada um tem uma história para contar, etc., etc., etc.

Enviei mensagem via WhatsApp dando a notícia aos meus irmãos, no grupo da família. E planejamos uma passadinha no velório no início da noite. Costumo resistir a idas a velórios, eu não gosto, é muito doloroso... as pessoas choram, os tolos ficam perguntando “como foi?”, e o pobre morto, que não sei ao certo como se sente naquele ambiente fúnebre de larga tristeza e despedida, fica lá, exposto, com aqueles tufos de algodão no nariz... ah, chega!

Pois sim. Um de meus irmãos, que teve mais contato com o rapaz, me disse:

- Potó véi... era tão prestativo! Arrumou meu carro várias vezes!

Anoiteceu e nos organizamos para ir à casa do Raimundão, prestar nossa solidariedade. Eu estava convencida de que precisava participar desse momento, afinal ele foi meu vizinho.

O relógio marcava 18h e uma voz me chama na porta:

- Bora, tia Celcinha!

Era Livinha. Estavam todos na calçada, esperando completar o grupo para a visita planejada mais cedo. Reunimos umas 10 pessoas.

Enquanto aguardávamos meu irmão, seguiam-se aquelas costumeiras conversas próprias dessas horas: “ah, cumadi, porque o novo, e não o véi, que até doente tá?”; “só Deus é quem sabe da nossa vida”; “será que foi ele o rapaz que morreu afogado na lagoa?”; “25 anos... tão novo!”.

Minha irmã dá o comando para que sigamos. Resolvo ficar para esperar meu irmão e sua esposa. Enquanto isso, digito no celular uma mensagem para um de meus irmãos que não participa do grupo da família no aplicativo:

- Ei, tu se lembra do Potó, filho do Raimundão? Ele faleceu!

Nisso, minha cunhada publica no grupo: “vem pra cá, pra gente ir de carro... tô sem condição de ir a pé.”. Ela, assim como o meu irmão, estava se recuperando da Zica.

Respondi que nos encontraríamos lá, pois preferia ir acompanhando o que chamei de “procissão”.

Enquanto digitava, minha irmã, que já ia descendo a rua, deu meia volta. Alguém lhe perguntou.

- Que foi, Célia?

- O homi num morreu não!

- Quê?

- Tá é vivo! Lá no bar!

Pense numa desconstrução total! Eu bem queria explicar aqui, mas não sei como fazer isso. O rapaz, de alma recomendada e tudo, vivo! Seguindo normalmente sua vidinha, tomando sua cachaça, e nós lamentando a desgraçada da morte precoce.

Minha filha dispara, indignada:

- Ah, mãe, e agora, a gente vai fazer o quê?

Maria Celça
Enviado por Maria Celça em 20/06/2016
Reeditado em 20/06/2016
Código do texto: T5672698
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