QUIZÍLIA
Deitado em sua velha e surrada rede, atada no alpendre da sua humilde casa, o velho Luis Possidônio, observava o céu daquele mês de março carregado com nuvens escuras, prevendo que a noite com certeza choveria, pois o ribombar do trovão ao longe, e o relâmpago abrindo pras bandas do Piauí, não falhava nunca, era chuva na certa.
Velho Luizão, como era conhecido, talvez pela sua agigantada estatura, era quase um eremita. Herdara do pai, que herdara do avô, que herdara do bisavô... Uma pequena nesga de terra – 20 braças de frente com 60 de fundos, avizinhada de uma quinta (sítio) que se perdia de vista. Propriedade de uma família abastada (os Evaristos) o que há muitas gerações vinha causando intrigas, brigas, e falava-se até em crime de morte, entre as famílias, embora nunca houvesse sido provado.
Na década de vinte, as referidas terras distavam a uns dois quilômetros do centro da cidade, zona periférica, localidade conhecida por “alto do jiló”. Ali predominavam grandes sítios de coqueiros, bem como quintas de cajueiros, plantas nativas do litoral, até mesmo porque as citadas propriedades ficavam a poucos metros do mar. Somente depois de muito tempo, com a construção da “Igreja de São Pedro”, veio a urbanização, atualmente “Bairro de São Pedro”.
O velho Luizão nascera ali, sendo o primogênito de uma prole de onze irmãos. Família pobre, viviam do sustento da terra e da pesca. Por ser o mais velho, logo cedo começou a lida, ao lado do pai. Hora pescando no mar ou no lago (dependia da época), hora plantando na roça, hora fazendo carvão, etc... Tinha que se virar, pois precisava ajudar no sustento da família, que por sinal ficou reduzida, pois dos onze que nasceram apenas quatro vingaram. Sete a danada da bexiga negra levou (espécie de varíola). Naquele tempo não existiam vacinas, bem como não existiam anticoncepcionais. Nascimentos eram muitos, agora sobreviver à doenças como: sarampo, varíola, difteria, tuberculose, poliomielite e outras, era uma verdadeira loteria, onde apenas os mais sortudos escapavam.
Assim o tempo ia passando, e Luizão sempre trabalhando com os irmãos (coincidentemente todos do sexo masculino). Agora para proporcionar o sustento dos pais, pois já estavam velhos e não mais suportavam trabalhos pesados. Se não fosse de quando em vez, a família sofrer achaques e insultos dos vizinhos ricos, que teimavam em querer lhes tomar a mísera nesga de terra que possuíam. De imediato respondiam: se preciso fosse iriam as armas, pois aquele pedaço de chão era sagrado. Herdado que era dos antepassados, só mortos dali sairiam. E não entendiam o porquê dessa insistência dos vizinhos em querer tomar-lhes tão insignificante pedaço de terra, em detrimento aos que possuíam, pois enquanto o deles (Evaristos) compreendia vários hectares, com cajueiros, coqueiros, mangueiras, etc... O seu, (Possidônio) era apenas um lote miserável, onde somente havia dois pés de coqueiros e um de cajueiro, além da humilde casa de taipa. A família Possidônio respondia a qualquer ataque por parte dos vizinhos, e estava preparada para “guerra” se preciso fosse.
Assim entre pendengas e labutas, o sábio tempo passava em sua inexorabilidade.
Os velhos (pais) morreram. Dos irmãos, um casou e foi morar com a família da esposa, pras bandas da Serra Grande, os outros três embarcaram em navios – na época atracavam no porto, e se danaram neste oco de mundo, d’onde nunca mais mandaram notícias. Restou apenas Luizão. Dali nunca arredara o pé. Agora já velho, pois nunca casara, vivia ali na mesma casa. Continuava a tirar o sustento da pequena roça, da pesca, da caça, da criação de umas poucas galinhas e porcos. Como companheiro, tinha o fiel amigo “Gosgoréu”, o cão vira-lata. Assim ia vivendo satisfeito; não era muito dado a conversas, preferindo o isolamento em sua humilde choupana, e a companhia das plantas e dos bichos. Por isso, o “velho Luizão” tinha fama de bicho do mato, eremita, e até gostava, pois assim quase nunca o perturbavam, deixando-o viver em paz.
Mas a vida apronta as suas de vez em quando.
Na sua velha rede, naquela tarde de março, o velho Luizão, tirou do bolso uma lasca de fumo, pôs na boca (era seu único vício). Começou a mascar, ouvindo de longe os trovões, continuou a matutar sobre o inverno, a vida, etc. De repente, ouviu um barulho do lado esquerdo da cerca que fronteirava com o sítio dos Evaristos. Gosgoréu logo começou a latir, denunciando a presença do inimigo. O velho levantou-se, deu cabo de um facão que estava sempre ali por perto, e foi ver o que se passava. Ao aproximar-se do local, notou a presença de uma pessoa. Como as vistas já lhe eram curtas, indagou, enquanto se aproximava:
- Quem está aí?? Nada de respostas. Luizão voltou a inquirir:
- Responda!!! Diacho. Quem está aí?? Um rapaz de mais ou menos 18 anos, branco, cabelos castanho, bem apessoado, completamente embriagado, respondeu com voz pastosa e entrecortada.
- Calma... Calma... ! Seu Luizão, sou eu.
- Vosmecê quem?? Voltou a perguntar o velho.
- Cláudio... Cláudio Evaristo...! É que cheguei em casa bêbado, meu pai me surrou, e colocou-me pra fora de casa... E... Eu quero morrer!!! Por isso vou me enforcar neste cajueiro, disse Cláudio. Luizão olhou, e viu que o rapaz trazia em uma das mãos, uma corda de manilha enrolada.
- Pois se vosmecê quer morrer, que morra! (Falou o velho). Pro mode, pois, vá morrer noutro lugar! Aqui, é que não! Aí no sítio do seu pai tem mais de mil cajueiros, mode que, vosmecê quer morrer logo no meu, que só tem um?
Retrucou Cláudio:
- Ah! Meu senhor... hic...hic...hic (soluços). Eu não quero mais nada dele, prefiro morrer... É neste aqui! (Dizendo isso foi passando a corda num galho da árvore e armando o laço). O velho Luizão, que não era de muita conversa, e sim de ação, adiantou-se e meteu o facão na corda, cortando-a.
- Moço! (Rebateu) eu já lhe disse. Se vosmecê quer morrer, não tenho nada a ver com isso, mas vá morrer noutro lugar, aqui vosmecê não morre!
O moço respondeu:
- Eu quero morrer é aqui!! E novamente laçou o galho. Incontinenti, Luizão cortou novamente a corda. E assim ficaram os dois, nessa pendenga.
- Eu morro é aqui! (dizia Cláudio). E passava a corda.
- Aqui vosmecê não morre! (dizia o velho). E cortava a corda.
Até que chegou o momento em que a corda estava em pedaços, e não dava mais pra laçar o galho, nem mesmo para enforcar um pinto. Luizão olhou vitorioso e ofegante para Cláudio e disse:
- Não falei que aqui vosmecê não morria!!! O rapaz por sua vez ainda em alto estado etílico, respondeu:
- Ah!! É?? Pois vou buscar um cabo de aço ali em casa, e volto para mostrar se eu morro aqui, ou não?! Quero ver o senhor cortar!! E, dizendo isso, pulou a cerca, e saiu cambaleando e lamentando-se, rumo à casa que distava do local uns 150 metros.
O velho nada disse, limitou-se apenas a olhar. Passados uns 15 minutos, irrompe novamente o moço, no sítio do velho Possidônio, munido com um rolo de cabo na mão. Ao ver Luizão ali de pé, foi logo falando:
- Está vendo, velho!? Quero ver agora me impedir. Ao que o velho simplesmente respondeu.
- Está vendo?? (e mostrou o cajueiro que estava no chão). Quero ver agora vosmecê morrer neste cajueiro!
O velho Luizão, ainda ofegante, segurava nas mãos um machado... que no intervalo da ida do rapaz a casa, usou para derrubar o cajueiro, restando apenas de pé um toco do caule da infeliz árvore.
O rapaz voltou pra casa e a vida continuou. O velho Possidônio morreu, não deixou herdeiros. Os Evaristos também já se foram. Talvez existam alguns da nova geração.
Os sítios, quintas, terrenos, foram repartidos, loteados. Hoje em seus lugares existe um bairro super populoso (São Pedro) com casas, prédios, comércios, enfim a cidade tomou conta de tudo. Até mesmo da quizília dos Possidônios x Evaristos.
Ignácio Santos