No inspiration
Na manhã fria desse sábado de junho, por vários minutos tentei tocar algum tema no teclado, sem sucesso.
Surgiram idéias, que me escaparam entre os dedos.
O frio me deixa sem inspiração.
Affonso Romano de Sant'Anna diz que o cronista é um escritor crônico, e como tal, atravessa o tempo em busca do seu “eu”.
Acontece comigo que o tempo simplesmente para quando está frio.
Tudo o que eu quero em dias assim é deitar confortavelmente numa cama e assistir filmes, até cair no cochilo, acordar de repente, quando o filme já caminhou vários minutos, tentar entender a história e, sem sentir, dormir novamente.
Tai um bom assunto, que vou deixar para outra crônica, porque acabo de descobrir que não sentir inspiração é uma ótima inspiração.
Volto a encarar o monitor, quieto, calado, quase uma estátua de gelo.
Recentemente ouvi alguém dizer “fumos fidalgos”, em referência ao Dom Casmurro de Machado de Assis.
Fui buscar o significado e descobri que é quando alguém se envaidece com o título de nobreza.
Eu, barão? Acho que não levo jeito.
Num repente, senti vontade de falar daquilo que não dou a mínima, como a fórmula de bhaskara, que sofri feito um pobre diabo para entendê-la nos meus tempos de estudante, mas que nunca a usei para absolutamente nada.
Ou então versar sobre silêncios, noites, anotar o inexprimível, fixar vertigens e só lá no fim contar que é de autoria de Rimbaud.
Apanho no ar perguntas tolas, o que é mais antigo, aveia Quaker ou emulsão de Scott? Qual o nome do cantor de nuvem passageira? Será que Torquemada sentia frio quando acendia a fogueira?
Nada faz sentido.
Até o título dessa crônica troquei diversas vezes e no final acabei optando por este em inglês.
Sem querer, acabo imitando John Lennon quando compôs “I Am The Walrus”, que ele tinha três canções em mente, não conseguia terminar nenhuma, juntou todas numa só e conseguiu a melodia perfeita, embora a letra seja totalmente sem sentido.
Uiva o vento frio e penso apanhar alguma coisa no azul, minha cor predileta, que me provoca inspirações, nela já me apanhei contemplando o céu e desenhando bichos nas nuvens, também já a tive na roupa dependurada no varal e num enorme navio que só conheço em pensamentos, tudo azul, que foram suficientes para me permitir envolver pelo ruído do teclado, escrevendo frases soltas no meu cérebro, um encaixe, um personagem, a bola que atravessa a rua e faz o carro parar, com medo que uma criança atravesse, provocando espanto logo depois, ao perceber que é a figura de um adulto que corre atrás da bola azul.
E agora me deu vontade de comer polenta.
Passou rápido, porque lembrei que na geladeira tem um pedaço de pudim de ontem, vou lá pegar, antes, porém, preciso mudar a faixa do youtube, que me deixou incomodado essa música do Roberto Carlos, “se outro cabeludo aparecer na sua rua...”, que nada tem a ver comigo.
Na volta desprezarei o frio e fixarei meus olhos no ponto final, sem fumos fidalgos, apenas o aperto brusco do desligar das tomadas.