A REVOLTA DOS DEFUNTOS
Era do tipo irrequieto, de querer tirar vantagem em tudo . Pelo o que vivia aprontando, de há muito era esperado e quando chegou foi botando banca, reclamando da acomodação: cemitério da periferia, mal cuidado, cova rasa, estreita e eram tantos defuntos ao seu redor que lhe tolhia todos os movimentos e tirava toda sua privacidade. Sentindo-se incomodado, imaginou fazer alguma coisa... pra começo teria que colocar ordem naquele amontoado de defuntos desocupados, que outra coisa não faziam, a não ser ficarem deitados dia e noite, noite dia de papo pro ar, mãos cruzadas sobre o peito, sem coragem nem de assombrar uma alma viva. Então, pensou... É preciso acabar com essa folga eterna, vou tomar conta do pedaço, incitar esses defuntos a saírem desse marasmo, promover passeatas, quebra-quebra, reivindicar cemitérios gramados e bem cuidados para todos, covas fundas e espaçosas, cumprimento das coisas prometidas pelo senhor vigário, vida mansa no céu ao lado do Senhor, direito de ir e vir, livre para assombrar os inimigos e proteger os amigos etc. Esperou a noite chegar e saiu de cova em cova, convocando os defuntos para uma reunião. Mas qual o quê! Depois de tomarem conhecimento das intenções do defunto que acabara de chegar, querendo mudar a ordem das coisas, a gritaria foi geral! O defunto mais velho tomou a palavra e disse: olhe aqui ô seu defunto estamos escaldados com o tipo de pessoa que você era, não admitimos líder por aqui, a gente passou a vida toda quando vivo sob o julgo de um bando de políticos travestidos de líderes, reconhecidamente corruptos, vendendo“” boas intenções” na base do venha a nós tudo e a vós nada, matando um leão a cada dia para sobreviver, acordando de madrugada, enfrentando a fila de ônibus superlotados, trabalhando que nem um condenado, ganhando pouco, aguentando aporrinhação, cheio de deveres e nenhum direito, agora que a gente morreu e ouviu a recomendação de descanso eterno dá-lhe Senhor, aí vem você , querendo ditar normas, tirar a gente deste descanso merecido e que tanto prezamos. Quer saber de uma coisa, vai pro teu buraco esperar virar caveira, fica quietinho que acostuma. E todos voltaram para as suas covas, inclusive o defunto ainda fresco, que foi curtir a sua morte na “solitária companhia do seu próprio cadáver”, enquanto aguardava o seu “organismo se decompor e apodrecer, como o corpo de todos os mortos”. Afinal, era o que estava escrito no último livro que leu: “Olhos de Cão Azul” de Gabriel García Márquez...