Assim ou ... nem tanto 49

A Intimidade

A intimidade chegava quando, fechava a porta e se despia. Primeiro a camisa, depois as calças… Vi-a confundida com o rapaz do espelho. Sorria um sorriso falso, abria muito a boca, certificava-se de que as gengivas estavam sãs. Cheirava o sovaco e torcia o rosto que lhe dava aquele esgar entre o patético e o idiota. Falava à procura do melhor timbre e, só muito depois, ele e a intimidade tomavam o banho de chuveiro. Quando se perfumava e saía, já a intimidade se recolhia num silêncio comprometido e os ares, gestos, palavras e atitudes eram públicos. Cresceu assim, amadureceu, fez todas as coisas que esperavam dele sem emoção. Raras vezes se encontrava consigo mesmo e quando caía a noite e ficava horas acordado a congeminar razões, eram sempre razões ponderosas, razões de emprego, manhas de publicidade agressiva. Quando, em momentos pontuais, a intimidade aparecia era para sugerir que controlasse a comida, que visse a barriga a medrar, as bochechas a descair flácidas. Nunca mais lhe pediu que sorrisse ao espelho, se achasse bonito, que ensaiasse a passada antes de aparecer empertigado demais para ser autêntico e natural. Vinha e ficava triste, calada, sem nada para comentar. Sacudia a cabeça em negativas repetidas e, a seguir, tomava banho mas sem fazer ondas nem reparos. Importava nada a barriga, os pelos brancos, a solidão doentia. Um dia acordou sem pressa. Já nunca mais sairia sem beber todo o café nem teria de ser agradável quando a vontade era mandar toda a cambada de chefes e colegas a inconfessáveis lugares fedorentos. Estava aposentado. Viúvo. Velho. Chorou grossas lágrimas por estar só ele e a intimidade. Foi uma surpresa ouvi-la dizer que teria outras coisas para fazer, para ver, para sentir. A intimidade voltara para mudar o dia e ofereceu-se para tomar banho com ele. Nu, o homem sorria para o espelho, voltou a observar os dentes, penteou-se com esmero e, quando se perfumou e ela se recolhia, ouviu-se a dizer: podes ficar. Daqui para a frente iremos juntos a todo o lado. Contigo vivo mais e melhor. Sou mais eu.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 07/06/2016
Reeditado em 08/06/2016
Código do texto: T5660478
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