CAIXÃO DAS ALMAS

Naquele ambiente úmido, um simples quiosque de madeira, na beira do rio, jaz em cima de uma tábua, o corpo esquálido e consumido daquele pobre infeliz.

Único compartimento do cubículo agora onde está morto, lhe servira de moradia. Não tinha ninguém, da família não se sabia, pois viera cá pra estas bandas, há muitos anos atrás, de outras paragens, além-mar. Chegara no bojo de um navio para aqui trabalhar no porto, estivador que era, mancebo jovem e forte como um touro. Trabalho não faltava... Mas, com a desativação, depois de alguns anos do porto (estiva) e, logo após, do ramal ferroviário, as coisas foram ficando cada vez de mal a pior. Já não era tão jovem, passando então a fazer carretos (bicos) no mercado, no cais, etc.

Não casara, não constituíra família, o que ganhava dava só para comer e tomar suas cachaças, aliviando a saudade dos bons tempos. Assim ia vivendo como “Deus lhe era servido”.

Agora jazia ali sua velha e suja carcaça, naquele lugar úmido e fétido que fora o seu lar. Andrajoso, esticado em cima de uma tábua, velado por algumas pessoas caridosas, pois apesar de tudo, era tido como “boa praça”, respeitador, honesto e trabalhador. Mas, tirando o que já foi citado, algumas almas caridosas, a grande maioria era de colegas, ou seja, outros desafortunados que partilhavam da mesma desdita, e viviam desgraçadamente na vizinhança, parceiros de infortúnio, com estórias parecidas e que, com certeza, também esperavam a morte chegar, com a resignação que somente a “cruel madrasta” poderia aliviar-lhes o sofrimento.

Em meio à fumaça e ao cheiro agridoce das velas que tremeluziam ao redor, as pessoas comentavam:

- Coitado! Que descanse em paz! A morte veio lhe trazer alívio, pois não tinha ninguém neste mundo.

- E o enterro?? Que horas sairá?? Perguntam-se todos.

- Nós é que temos que decidir! - outro responde. Então alguém lembra...!!

- Temos que ir buscar o “caixão das almas”.

Tudo acertado, feito a “vaquinha” para comprar cachaça, pois é produto imprescindível nestas ocasiões. Vão-se os amigos para trazer o invólucro fúnebre, conhecido popularmente como “caixão das almas”.

Este era um grande esquife de madeira de lei (pau d’arco), grande, pois era coletivo, e não se poderia prever o tamanho dos pretensos usuários. Era usado por todos os infelizes que ao morrer, a exemplo do nosso conhecido defunto, não tinham família, ou mesmo tendo, a mesma não dispunha de meios para comprar o famoso “paletó de madeira”. Na época, feito sob encomenda.

O dito cujo (caixão das almas) ficava à disposição na capela do cemitério. Era só requisitar ao coveiro que, de imediato, liberava o artefato fúnebre para o seu translado funesto.

Chegada a hora, como também o caixão, foi logo depositado em seu bojo o corpo do infeliz. Sem choro ou lamentação, sai o enterro do imundo muquifo, onde viveu sua triste e desditosa vida, para a última viagem.

Poucas pessoas acompanhavam o séquito. Apenas algumas almas caridosas e alguns colegas de infortúnio.

O trajeto é feito com razoável rapidez, sem interrupção, a não ser aqui e ali, para revezarem-se os carregadores do caixão, pois todos querem participar, bem como também, para uma ou outra golada na bendita cachaça, que amortiza as penas e agruras desta vida desgraçada.

No cemitério, uma cova aberta na terra com “sete palmos,” aguarda o pobre infeliz, que de imediato é retirado do caixão e literalmente jogado dentro do buraco para, ato contínuo, ser coberto com várias pás de areia frouxa e pesada sobre o peito. Para complementar, uma cruz tosca de madeira, sem efígie, sem nome ou data, é fincada na terra. Um gole a mais, uma última olhada, alguns comentários do tipo:

- Deus te leve! Descanse em paz! Adeus, amigo... E todos se vão, fechando assim com este triste e lacônico episódio, a última página do livro da vida daquele pobre e infeliz coitado.

Com o passar dos anos, com certeza, naquele local, nem mesmo a cruz mais existe.

Talvez outros desafortunados da sorte tenham sido sepultados no mesmo lugar. Assim como também não mais existe o famoso e útil caixão das almas.

Com o advento do progresso, hoje as funerárias disputam o mercado com seus planos de assistência póstuma, onde todos pagam pequenas mensalidades, a exemplo de água, luz, telefone, etc... para poderem usufruir de caixões e funerais completos na hora H. E até mesmo para aqueles que, a exemplo do nosso pobre infeliz (hoje são poucos), não dispõem de recursos, obtém-se uma ordem, e a funerária conveniada com a Prefeitura, resolve a questão.

Por ter se tornado obsoleto, sem serventia, o “caixão das almas” que há tantos serviu na última viagem, sumiu, desapareceu. Fez também sua viagem derradeira. Talvez tenha servido como combustível (carvão) para alimentar o forno de alguma padaria, tendo se transformado em cinzas... Como as lembranças cinzentas do passado que me fazem recordá-lo.

Ignácio Santos.

ignacio santos
Enviado por ignacio santos em 07/06/2016
Código do texto: T5659951
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.