Anjos - uma realidade branca e vermelha 

 

Por favor, me digam quem sou eu?

 

Há alguém que pode me dizer quem sou eu, se eu mesma já não me reconheço ao folhear o jornal e me deparar com o Anjos do Ódio 1?

 

“ Eu vou brincar de assassino descarregando um 38.

Legal a cara explodindo, voando um olho.

Antes dos doze eu vou estar com um oitão.

Matando alguém sem compaixão.

Vou ver o filho, a mulher, chorando no corpo.

Vou dar risada, vou dar mais uns quatro no morto.

Feliz 12 de outubro, hoje é dias das crianças, e daí?

Quem vê sangue não vê alegria...” 2

                                      

Que reação pensou o eu que teria ao ler tantas histórias vertidas em dor? Eu, o eu que não dormia no dia em que fustigava os filhos por alguma estripulia qualquer e os advertia que na próxima não seria uma leve palma em suas mãos? Indagações mil me chegam e vejo diante de mim a minha covardia sorrindo melancólica, um riso máscara carnavalesca, em alegoria falsa de compreensão a tudo que lia.

 

“Na pia, mosquitos, baratas disputam restos,

Habitat natural  onde os assassinos crescem.

Outro dia a infância dominou meu coração

gastei o dinheiro que ganhei com um álbum do timão.

Á noite, as costas arderam no couro da cinta.

Ela tacou minha cabeça no chão, batia,batia,

me fez engolir figurinha por figurinha.

Espetou meu corpo com uma faca de cozinha.

O seu papel devia ser cuidar de mim.

  Não me espancar, torturar, me machucar.

Eu não pedi para nascer...”

 

 

O que pensa um menino de sete anos que prefere as ruas - aonde o papelão é só dele - a morar com a genitora de sua morta mãe, e ter que dividir com ela o mesmo papelão que a rua lhe oferta de “graça”? Ele nem sabe que idade exata que tem e eu tendo que disfarçar a minha. Um Botox é mais importante que um punhado de pães ou mães. Valores! “Afinal eu trabalhei para isso, eu lutei por isso.” Lutei? Que briga me trouxe a vida senão alguns concursos públicos? Vestibular e um outro que me garante a estabilidade do pão para que eu poste, num lindo site, o meu lado poético. Patético, seria mais condizente com  a realidade do meu riso covarde ao encarar os fatos. Quando digo que a vida me deu tudo penso: filhos criados; algumas cirurgias bem sucedidas que não me deixaram nada mais que umas poucas cicatrizes; aulas sobre o comportamento humano, literatura...  Doutor em lixo... a sub-especialização da especialização do primeito quadrante do rabo do rato não me poupa,  a minha covardia continua me afrontando,  berrando o riso da real minha cara. 

“... Vá se ferrar, é hora de me vingar.

Alguém tem que chorar.

Vou enquadrar uma burguesia e atirar pra matar.

Minha 5a. série só adianta se eu tiver um refém

com um cano na garganta.

O Brasil não  dá escola, mas dá metralhadora.

O Brasil não dá comida, mas põe crack na tua roda.

O Brasil só me respeita com um revólver.

Vou fumar seus bens e ficar bem louco.”

 

O Anjos do Ódio não me inocenta por eu ter depositado em mãos vazias algumas moedas que descansavam no painel do carro.  Não. A dúvida que rasga alguns  meninos que colam palitos de picolé um sobre o outro – até formar uma caixa ou uma cúpula para abajur, cafonas (que palavra horrível)  e invendáveis – não é menor que a minha. Mas a deles não importa, não é mesmo? Afinal eles foram criados na rua e sabiam, desde cedo,  que não têm mãe, que o pai foi preso e cumpriu ou cumpre  pena por alguma porcaria qualquer que tenham feito, (ou por outra, nunca saberão exatamente como e quem são seus pais, mas isso tanto faz.) e que a Escola  Rodoviária não lhes renderia mais que isso, reclusão por poucos anos (o quê são cinco ou seis anos na infância ou na adolescência para determinar o que vai ser um indivíduo? O que foi mesmo que li nas escolas piagetianas? ). Meu Deus, (devo dizer: meu ?) e  alguns deles ainda duvidam que isso possa prejudicar uma  adoção legal, por uma família igualmente legal, aos seus 13 anos de idade? Que escola incompetente!!! A família que esteve com um deles  por uma semana desistiu da adoção. Eu pensei comigo, será que esse garoto é realmente ingênuo a ponto de pensar que, de fato, seria adotado? E que junto com filhos legais e legítimos poderia conviver? Que absurdo! A minha covardia batia mais uma vez na minha cara limpa de ações. Eu não tive vergonha ao absorver o pai de família que voltou atrás em sua decisão.  Eu até pensei: Ainda bem que o louco raciocinou! Será que ele não pensava que poria em risco sua família? Devo pedir perdão a quem por ter pensado assim?

 

“A justiça não quer ouvir

que moleque que o pai dá as costas

pode invadir seu AP, derrubar sua porta,

matar seu parente pra pagar treta de droga.

Aí promotor, o sistema carcerário

 ainda é curso pra latrocínio.”

 

Ninguém quer pôr em risco suas famílias. Nesse ato de inércia colocamos nossas famílias na mira de Anjos que não são nem do ódio nem do amor. São anjos perdidos. Anjos que não foram recolhidos em suas asas, em suas mutações de penas. Que ficaram à deriva, num mar de noites frias cobertas por papelões e palavrões; aquecidas por cola, tinner e  algumas meias dos  tênis “vencidos” de alguns filhos de pais iguais  a mim. Omissos sem o saber que são. Omissos porque a sua única missão era embalar “Mateus”, na forma do dito popular,  cada um que embale o seu. - Eu não pari “Mateus”! Grito de sobressalto. E fecho o jornal, não há nada que eu possa fazer nesse exato momento. Não posso ficar afrontando minha conduta, minha maneira de ser piedosa como a vida me ensinou, fiz minha parte. Isso me basta. Basta? Qual foi mesmo essa parte?

- Droga, é mais fácil lidar com a minha covardia que com minha consciência.

 

Alguém pode dizer exatamente quem sou eu? Mas, por favor, antes leia a  reportagem Anjos do Ódio, de Ana Beatriz Magno e José Varella,  publicada no Correio Braziliense de 13/07/07, pergunte-se quem é você, quem somos nós e, então me digam: que anjos são eles?

“...A criança vira um monstro

com um 13 no pente quando

percebe que a propaganda

de bike, danome, mac lanche é só

para o filho da madame.

Carboniza um corpo, desfigura um rosto.

Não é desculpa pra revolta

porque não é seu filho.

O seu está alimentado, bem vestido

não vai gritar assalto em nenhum ouvido...”

 

 

1 Anjos do Ódio” -  título da  reportagem do Correio Braziliense; 12 páginas que colorem uma realidade que passa em branco a nossa frente. Parabéns a Equipe do Correio. O desafio é tremendo, a realidade nua e crua das ruas, da capital do país de quase 190 milhões de  habitantes, Brasília cujo  IDH é o maior do país. As pessoas que não conseguirem a matéria poderão me solicitar uma cópia. Confesso que não faço isso por prazer, mas por... sei lá o quê.   

 

2 Versos do Facção Central, grupo de rap - paulista, que integram a reportagem 
    supramencionada 

http://www.correioweb.com.br/

 

Divina Reis Jatobá
Enviado por Divina Reis Jatobá em 15/07/2007
Reeditado em 28/08/2008
Código do texto: T565983
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