O REVOLUCIONÁRIO

Os anos 70 foram os mais férteis e nostálgicos. A fantasia inebriava e euforia que brotava pelos poros fazia da adolescência uma fase de rebeldia. A candura que a vida era, a aparente naturalidade dos acontecimentos e a distância da truculência que mais tarde iria se revelar. Feliz por poder cursar os primeiros anos universitários, por ter professores revolucionários e colegas dispostos a enfrentar as forças repressoras. Filho da terra das primícias, sem terremotos, sem vulcões e furacões, sem geleiras e tsunamis. Não tinha motivos para se tornar rebelde, subversivo e noia. Os que já tiverem razão até se indignaram, mas não se rebelaram com tanta azáfama. Mas, para não ser covarde ele tinha se rebelado. Pertencia, agora, à vanguarda.

Retroagiu mentalmente no tempo e sentiu o veneno caudaloso subindo pelas veias dilatadas. Afaga as mãos magras, abana-as como tentando se livrar das asperezas da vida.

Caipirinha e uísque, foi só o início. Cerveja, maconha, cocaína com os revolucionários vieram depois. Correria da polícia, dos tropéis da cavalaria, das cirenes barulhentas e dos cassetetes. Nas portas das fábricas, nas universidades, nas praças, nas ocupações de terras, seu nome listava dos primeiros voluntários; sem máscara e sem disfarce exposto às porradas e ao gás lacrimogênio.

Mas nunca cometeu qualquer delinquência como outros que se disseram revolucionários. Aqueles se aproveitaram das armas roubadas do Exército para assaltar bancos.

Nunca pretendeu ir a qualquer país socialista, embora tenha frequentado reuniões revolucionaristas. Ainda muito jovem se encantou por Chê, Trotsky e Lênin e Mao. Nunca usou boina ou camisetas personalizadas.

A ideia de que estudante de universidade pública tinha que ser rebelde, como se intelectualidade tivesse que misturar-se com insurreição, impreterivelmente, repercutiram na cabeça e formaram uma grande confusão. Afinal o poder do discernimento ainda não tinha feito uma revolução em sua jovem inteligência.

Mais tarde algo vem lhe dizer que indignação, sim, é própria das criaturas sensatas. Ah, os jovens classe média não são menos racionais. Apanhar da polícia, incendiar ônibus, estimular greves, carregar faixas, proferir palavras de ordem, ser banido do país na esperança de retornar contemplado pela lei de anistia para poder se candidatar a deputado ou a senador. Seria sonhar alto demais, mas quem sabe um dia chegaria ao comando do país.

O sol entra nos barracos sem pedir licença. A água caudalosa e suja das enchentes também invade e afaga os favelados. Eles fazem filhos nos barracos esburacados e não se envergonham de gozar. A revolução nunca esteve nas comunidades para os que dizem que lá foi a raiz dos vícios, da promiscuidade e do narcotráfico.

Hoje aos oitenta anos é um rebelde da senilidade. Ora, a anistia veio como avalanche e o arrebatou da rebeldia, concedendo-lhe o título de cidadão subversivo, que a erudição prefere chamar doutor honoris-causa.

Urinou aos pés do monumento, cuspiu no pedestal do padroeiro, vestiu calça moletom para dar entrevista e mostrou ao jornalista um fragmento da bandeira rasgada e incendiada na noite anterior. Disseram-lhe que isso não se fazia com uma bandeira, um trapo pintado de verde e amarelo ou uma cor de segunda ordem qualquer – um pedaço de tecido que poderia ser um pano de chão, pintado de vermelho, ocre ou uma descor qualquer. Rasgou o livro sagrado da lei. A lei, ora a lei, feita por homens com sonhos, desejos, antecedentes duvidosos e interesses preconcebidos.

O agente policial disfarçado de repórter deu voz de prisão. Crime de lesa-pátria, sem fiança. Vai para a cadeia, imbecil. Subversivo, filho da puta, bandido. Iria conhecer a tão malfada cadeia do Regime que não estavam em seus projetos. Corria o risco de ir para o pau-de-arara, perder os dentes as unhas e a vida.

Foi morar no Canadá. Foi conhecer as inefabilidades equatoriais, as calamidades glaciais.

Escorraçado do país que chamou pátria, mátria, minha terra, terra natal, terra querida, tinha sido espancado nos bares, nas zonas, nas praias, nas ruas e nos distritos policiais. A terra querida onde não havia tremores de terra, nevascas nem tsunamis o tornou o mais torpe indivíduo. Órfão e desamparado não teve outra alternativa. Tocou os lábios da moça que amava e foi voar sobre o extenso Atlântico.

A identidade forjada o ajudou a disfarçar o crime. Foi sucumbir de frio num país distante, no hemisfério norte.

O Canadá o acolheu nas ruas gélidas, nas marquises, nas estações, nas casas com aquecedor elétrico. Lá não foi espancado, nem tratado como escória. Foi vender água de coco e churrasquinho. Ensinou inglês para imigrantes. Não esqueceu a terra natal nem no gabinete nem no consulado.

A rebeldia nunca o abandonou, mesmo que não voltasse a estraçalhar os panos pintados de verde e amarelo, nem se atrevesse a rasgar as folhas de um livro chamado constituição. Mesmo que morresse de frio não deixaria morrer seu caráter.

Olhou de soslaio para um pano pintado de vermelho com a foice e o martelo desenhados no centro. Levantou-se e foi botar para tocar uma sonata de Verdi. Olhou os quadros de Cezane pendurados na parede os quais substituíam as fotos de Trotsky e de Chê. Nunca mais tocaria aquela canção revolucionária de Pablo Milanez.

Joel de Sá
Enviado por Joel de Sá em 02/06/2016
Reeditado em 02/06/2016
Código do texto: T5654644
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