Vestigios do Passado
Melissa estava absorta, fone nos ouvidos e o olho no celular. Procurava uma musica de Eric Clapton que o pai baixara da internet antes de viajar, recordando suas palavras saudosistas que narravam os feitos enamorados da sua época de juventude, ela reeditava os nomes das paqueras do pai e abria o sorriso quando ele pedia segredo da mãe, “ela morre de ciúmes do meu passado” repetia sempre. O ponto de ônibus estava vazio naquela hora e costumava ficar oscilando com poucas pessoas até próximo das onze horas em que alunos da Escola Mágia do Saber saiam de volta as suas casas. Na tela do celular marcava oito horas e doze minutos, manhã fria de Outono. A musica tocava com a lentidão de um pássaro que voava soberbo cortando a linha do horizonte, Melissa se deixou criar asas e voar distante dele como um ponto de fuga dentro daquela perspectiva que a qualquer momento se convergia. A voz do pai vinha e o nome “Dominique” ilustrava suas aventuras, fora a namorada que marcara sua febre de paixão, “Dominique” repetia Melissa deixando as asas de lado e voltando a ordinária espera naquele banco, agora o ciúme era dela, pois o pai sempre se lembrava daquela Dominique, como seria ela? Uma menina loura de cabelos cacheados, mais ou menos um metro e setenta feito a Jordana, uma colega e desafeta de sala, mas Jordana tinha tatuagens e cruzava as pernas para mostrar a calcinha. Melissa desconectou o fone e lançou colérica dentro da mochila, não queria mais saber de musicas que recordavam libertinagens do pai, retirou outro chiclete da caixinha e mastigou freneticamente com a incomoda presença de Dominique. Viu o vestiário das meninas depois da aula de Educação Física, Dominique se gabando pelo bom desempenho no jogo de Vôlei e repetindo que estava convidada pelo técnico do time de Futsal masculino a entrar com a bandeira nos jogos estudantis, tirava a roupa fazendo em “nam, nam, nam” a musica de Eric Clapton que o pai mais gostava. Ele também não se cansava de contar como fora bom jogador de Futsal, as medalhas se espalhavam pela casa para corroborar. Enquanto isso Dominique tirava a roupa, era corpulenta, tinha seios médios e redondos, bunda e pernas malhadas, a água caia com plasticidade no seu corpo nu, quando a mãe de Melissa surgiu enrolada numa toalha, na altura das coxas havia duas faixas coloridas com as siglas de um time de basquete americano, ela se despia sem pudor para ir ao chuveiro. O coração de Melissa palpitava, suas mãos tentavam involuntariamente recolocá-la em baixo da toalha, mas ela tinha ar de feliz mesmo com os seios caídos e os bicos grossos sem se entenderem na mesma orbita, havia um desenho de estria formando garatujas abaixo do umbigo fundo que lembrava uma panela sob o volume da barriga, o ventre parecia selva primitiva pela imensidão de pêlos desordenados, onde via-se claramente que a auto-estima estava em baixa. Dominique tomava banho como se estivesse em um palco dançando “O lago dos Cisnes” a musica do Eric Clapton não saia dos seus lábios, sua mãe serena não se importava com a rival em plena exuberância. Melissa olhava as duas simultaneamente, desejava que a moça não abrisse os olhos, não se aproximasse daquele lado onde apenas uma divisória de acrílico separava as duas. Mas para a sua tormenta os chuveiros foram desligados ao mesmo tempo, invisível feito espírito que tem visão, mas desprovido do tato assistiu pesarosamente as duas se cruzarem nuas no mesmo corredor e se olharem demoradamente como gladiadores na peleja. Sem conseguir se conter gritou alto e sufocante apertando os ouvidos. O motorista do ônibus pediu que se acalmasse, quis saber o endereço onde morava e para onde estava indo, disse também que ela havia cochilado e tivera pesadelo. Girando a cabeça meticulosamente Melissa olhou para as pessoas lhe admirando como se fosse bicho exótico, o trocador com a boca aberta impedindo com a mão direita que um rapaz de chinelo e aspecto sujo passasse sem pagamento, o teto do ônibus apresentava uma marca chamuscada que media entre um metro e meio a dois de cumprimento e numa das janelas havia um sinal de violência, uma trinca pequena na parte superior provavelmente uma pedra atirada. Melissa sentiu-se aliviada por não estar dentro do banheiro com a mãe e a ex do pai naquela contenda desleal. Voltou-se ao motorista e agradeceu com uma ponta de acanho pelo surto da recordação. Impôs mais uma vez o olhar em busca de eliminar qualquer risco de um telé transporte ao vestiário feminino. De repente viu levantar-se uma linda mulher de pele branca, alta, bolsa de uma marca que a mãe costumava usar dependurada de lado, óculos escuros na cabeça e olhos verdes denunciados a distância, usava um jeans colado realçando as pernas grossas, uma blusa branca com desenho de uma tartaruga e o nome do projeto de proteção aos animais, estava sem sutien e os seus seios não eram caídos, notara pela leve protuberância dividida pelo pescoço daquele ser da ordem dos Testudines. A mulher vinha em sua direção, constrangida pela fugaz analise visual virou-se para olhar o lado de fora, mas simultaneamente uma mão perfumada de unhas escarlate tocou-a sutilmente, “Oi posso te fazer companhia?” Melissa disse sim balançando a cabeça. “Qual seu nome?” “Me chamo Melissa!” “O que houve com você minha querida!” “Ah não sei, estava com umas lembranças ruins na cabeça e acabei exteriorizando” “Lembranças, lembranças! Às vezes nos faz mal, às vezes nos faz bem, para mim são as duas coisas, dói quando me lembro da parte ruim, mas alivia quando penso na porção compensativa!”Melissa voltou-se novamente para a mulher que falava com um doce hálito de morango, daquela distancia era ainda mais encantadora, teria mais ou menos a idade da sua mãe, a queria como mãe, pensou a vendo chegar com ela de mãos dadas na reunião de pais, depois no sábado, clube cheio de pessoas superficiais. “Nossa Melissa como sua mãe é linda!” fantasiou Pâmela filha do Inspetor de alunos ávida por umas selfies com a mãe mais bela para postar em Facebook. “Me conta!” Melissa tomada por aquele prazer instantâneo sentiu olhares curiosos buscando saber do que se tratava a conversa, assim aproximou-se um pouco mais, queria se inteirar como o filho que pede história para dormir. “Conto sim, aqui foi o lugar que vivi meu conto de fadas, o primeiro e mais forte amor da minha vida, me lembro de cada instante de tudo aquilo que passamos, mas infelizmente por influências dos meus pais que fizeram da minha felicidade um negócio, passei anos angustiada, do outro lado do mundo sonhando em voltar. Até que reconquistei minha liberdade e aqui estou para tentar reaver o que perdi, até fazer o impossível se for preciso!”Melissa notou um sutil marejar de lágrimas nos olhos dela e se deu a ousadia de apertar-lhe a mão. Porém foi interrompida pelo motorista: “Ei mocinha, o ponto do Flamboyant é aqui!”“ Obrigado moço! Vou descer, espero que você tenha sucesso com seu amor de cinema, está aqui meu numero, me ligue para contar novidades!” Melissa saiu correndo quando o ultimo passageiro que desceria no ponto aproximou-se da porta. Já com o pé no degrau, virou-se, mandou um beijo e gritou; “Você se esqueceu de dizer seu nome!” “Ah minha linda perdão, meu nome é Dominique!”