Assim ou ... nem tanto 48
Dentes Novos
Quando acordou a sua transformação acabara e ele era o homem feio e maldisposto que o atropelara com a canadiana no supermercado. A vontade que tinha no sonho era parecida com a raiva do deficiente. Um sol bonito, uma temperatura amena e ele preso ao coxear e às dores, à solidão. Quem iria gostar de tanto azedume, da sua boca sem dentes, dos olhos a chispar um ódio antigo? Merecedor de dó, o homem desafiava os que cirandavam em férias vendo com alegria tudo, comprando tudo, correndo pela praia em trajos mínimos para torrar a pele. A ele cabiam os protestos, as imprecações, as dificuldades. Número A cinco! Número A seis! Número E 32! E ele parado sem ouvir, sem conseguir ler o quadro electrónico, sem poder perguntar. Era assim a doença. Felizmente que foi só um pesadelo. Levantou-se para se ver ao espelho e experimentar as pernas, afastou os lábios para confirmar que os dentes sãos estavam no lugar, olhou de perto o crescimento das vibrissas, bocejou e voltou a deitar-se. Agora o sonho era outro. Incluía o homem da canadiana mas já nada tinha a ver consigo. Estavam, uma vez mais, no Centro de Saúde e o homem, ainda coxo mas já com dentes, era o futuro. - o médico nem me olhou, clamava. Os dez minutos da consulta só olhou para o visor do computador e as receitas eram um só papel para saber o que pedir na Farmácia porque tudo estava na net. Os dentes eram implantados e a canadiana, com design ergonómico, uma beleza. O doente queixava-se e ria, ria. Era um sorriso lindo numa cara feia mas como a esperança nunca morre, ele esforçava-se para achar quem gostasse de o ver alegre. Agora já podia.