O BURACO DA AGULHA
(Extraído do livro “Tute-Brincadeiras de Papel” do autor Samuel De Leonardo – Tute)
A principio o título acima pode remeter à obra de Ken Follett, transformada em filme, que tem por pano de fundo a Segunda Guerra Mundial e tramas de espionagem. Mas o que me traz aqui sãos as memórias da infância descerradas num momento em que minha companheira ao colocar um botão na camisa, pede gentilmente que a auxilie a introduzir a linha no buraco da agulha para prosseguir em sua costura.
Dada a dificuldade em poder ajudá-la após tantas tentativas em vão, me fez cair na real, haja vista que, e esta vista só é possível com os óculos, os anos passam e a nossa visão, ou a minha em particular, vai esvaindo-se e fazendo com que me esforce cada vez mais para enxergar. Tudo isso me levou a viajar lá nos tempos em que minha avozinha paterna, a Dona Hermínia, já com a visão limitada não me dava folga e sempre que necessitava recorria aos préstimos do netinho para ajuda-la manusear a linha no buraco da agulha. Ainda soa em minha memória auditiva:
- Tute, bambino mio – assim que ela me chamava – venha me ajudar a passar a linha no buraco da agulha, venha!
E eu, me sentindo o bambino mais importante da rua, abandonava o que estava fazendo e corria todo pimpão para atender ao pedido da querida velhinha. Interesses à parte sabia que por isso e outras coisas era o neto mais protegido por ela. Tanto que foram muitas as ocasiões em que ela me livrou de coças da minha mãe. Quando eu demorava para atende-la, ela insistentemente não se cansava de repetir:
- Mannaggia! Não me demore. Ma va!
Das primeiras vezes em que ela me solicitou tremenda tarefa, pacientemente ensinou-me os macetes para efetuar o serviço:
- Faça assim, molhe com a saliva a ponta da linha, esfregue-a com o dedo indicador e com o polegar a afine até que consiga ultrapassar o buraco da agulha. Puxe-a e não deixe a ponta escapar.
Com a visão que tinha na época acertava na primeira, sem ratear. Orgulhoso eu retornava ao que estava fazendo sentindo-me importante. De repente ouve-se novamente o chamado de Dona Hermínia:
- Tute vem passar a linha no buraco da agulha, venha!
Incansável, mas por vezes aborrecido por deixar as brincadeiras de lado, corria para atendê-la e, apressadamente sem maiores dificuldades, executava com êxito a missão. Tornara-me um exímio colocador de linhas e, sempre que podia, filava um carretel para empinar os meus papagaios.
Sinto saudades daqueles momentos, e compreendo mais e mais que além da dificuldade que ela tinha em realizar uma simples tarefa, na verdade estava me ensinando a difícil tarefa de ultrapassar obstáculos, pois a vida é um constante passar da linha no buraco da agulha. Sem uma visão perfeita, por vezes acertamos, por vezes erramos, por vezes somos obrigados a recorrer a alguém.
Vovó, com saudades de sua proteção, sou eu quem pede socorro agora:
- Mia nona, venha me ajudar a passar a linha no buraco da agulha, venha!