Assim ou ... nem tanto 47
O homem pássaro
Quando o atiraram para o abismo ainda o viram cair uns metros em queda livre. O sol declinava e já tudo era cor de sangue e ouro, cor de tragédia anunciada. A seguir ele abriu os braços e planou como uma asa delta em direcção ao mar. Para lá do que se via já dentro do ocaso ou encoberta pela sombra havia a aldeia onde todos pareciam fascinados com o homem que veio do céu, ainda moído de pancada, ainda com o vermelho a tingir a roupa larga. Havia entre eles quem falasse português e esse explicou aos demais a razão do voo da escarpa mais alta da montanha até ali. Chegar vivo era a prova de que era dileto dos deuses e intocável. E da cubata maior se fez quarto e a comida chegou à sua fragilidade. Ficaria como bruxo, curandeiro, chefe tribal. Um homem que vem pelo ar traz recados que importa conhecer e o povo a uma voz queria que ficasse. Que escolhesse ele os termos, a ocupação, a magia. E o homem pássaro, rodou os olhos pelos que negociavam, ergueu-se para falar, avermelhou no reflexo da fogueira e disse que aceitava. Quando a tradução chegou aos ouvidos dos que estavam houve gritos de alegria, risos e abraços, rufar de tambores e, por fim, regressaram à fogueira para saber as condições. O estrangeiro disse então que seria professor. Só a letrados contaria o segredo que se escondia na escrita, nas palavras que escrevesse. E a cada dia ensinava, das letras às sílabas, das palavras aos conceitos e destes a tudo o que fosse possível retirar da noite dos espíritos. Ensinava como podia, aprendia. Regressou homem comum ao seu destino e deixou na aldeia, aberto, o caminho dos sonhos.