A chegada de Adriana (fato real)
-“Esta menina é um tijolo pendurado por um fio de cabelo”.
A voz do Dr Múcio Abreu Neto, vizinho de três quarteirões, soava ainda mais rouca a abafada naquela madrugada fria, de garoa fina. Caminhava a meu lado, a passos largos, em direção ao nosso apartamento, atendendo a mais um de tantos chamados noturnos, naqueles últimos três meses. Não tínhamos telefone nem automóvel. Normalmente brincalhão, não conseguia, àquela hora, dissimular ou esconder seu pessimismo em relação às chances de sobrevivência de nossa filha.
Adriana nascera antes de completar sete meses de gestação. Ainda tinha a boquinha permanentemente roxa, sem forças para mamar e, sequer, chorar. Sua cabeça, medida pelo seu avô materno, era menor que uma pequena carteira de cigarros Minister. Senti-me mal quando vi Eliane banhando-a pela primeira vez. Naquele corpo, diminuto, os ossos pareciam lápis envoltos por uma pele com consistência igual à de uma meia-calça de mulher, tal seu raquitismo e debilidade.
Seu estado demandava cuidados ininterruptos, em revezamentos de vigílias, apreensivas e angustiadas. Todos, principalmente seus quatro avós, acudiam e ofereciam seus melhores préstimos. Por uma feliz sugestão de minha mãe, trocamos sua mamadeira por um pequeno conta-gotas, obrigando-a a sorver o leite materno, buscado em maternidades por meu pai, todas as manhãs, pelo tempo em que isto se mostrou necessário. Até leite de égua, como remédio receitado, dentre tantos, fora-lhe ministrado.
Seu primeiro aniversário foi comemorado como uma vitória coletiva de toda família. Pesava 13 quilos e já dava mostras de incrível vitalidade. Precoce, pronunciava algumas palavras. Divertia-se, orgulhosa, quando alguém lhe pedia para citar os números, até dez. Era feliz e o centro de todas as atenções. Assim foram seus primeiros anos de vida.
Nossa maior preocupação passara a ser o momento e a forma como lhe diríamos que era filha adotiva. Opiniões divergentes e exemplos de outros casos, nos confundiam. Apesar de determinados a não lhe esconder o fato, era cômodo concluir ser sempre cedo para isso, adiando, indefinidamente, aquela conversa.
Ao completar cinco anos já andava de patins e fazia malabarismos em árvores. Muito esperta, amorosa e sociável, relacionava-se com facilidade, com adultos e crianças, abastados ou pobres, a quem sempre dava algum de seus inúmeros brinquedos.
Um ano após, a chegada de seu irmão roubou-lhe parte do espaço cativo. Apesar de nossos esforços e, ainda que amorosa e satisfeita com a nova companhia, não escondia seus ressentimentos.
-“Luiz, a Adriana anda dizendo que o Edgard não é seu irmão, porque não nasceu da barriga da mãe!”
Aquela constatação soara como um alarme. Atrasado. Nossa filha já tinha noções suficientes sobre o assunto. Flagramo-nos em falha. Contar-lhe agora, seria como desmoronar o castelo de quem sempre fora rainha. Perdêramos o momento certo. Mas como fazê-lo agora? Quem teria coragem? Que consequências traria? Estaríamos preparados? Concluíramos que a pior opção seria novo adiamento. Temíamos, inclusive, o desenvolvimento de um precoce sentimento de rejeição. Decidimos assumir, juntos, tal incumbência.
O almoço daquele sábado transcorrera em clima tenso e calado. Retardáramos o quanto podíamos os afazeres de rotina, antes do descanso habitual pós refeição. Acomodamos Edgard em seu berço e nos dirigimos, os três, para o quarto do casal. Adriana ensaiava algumas brincadeiras quando a colocamos entre nós, na cama. Silêncio. Que Deus nos iluminasse naquela hora fatal. Tomei a iniciativa quando vi que Eliane não conseguiria falar.
-“Filha, por que acha que o Edgard não é seu irmãozinho?”
-“Porque ele não nasceu da barriga da mãe. A mãe buscou ele. Eu sei. ”
Mostrava-se convicta e segura de si, fornecendo pormenores de sua inocente lógica e conhecimento dos fatos.
-“Realmente, a mãe foi buscá-lo. Mas existem dois tipos de filhos, o da barriga e o do coração. Você sabia?”
-“Não”, foi sua resposta.
-“Mas eles existem. Sabe como são os filhos do coração?”, tornei a perguntar.
À nova resposta negativa, continuei, tentando encontrar as palavras que, numa sequência didática, lógica e paulatina, num linguajar simples, estivessem à altura de seu pleno entendimento.
“Existe mãe que morre na hora do nascimento de seu bebê. Ela vai para o hospital e, quando os médicos tentam tirar o bebê da barriga, em alguns casos, ela morre. Está entendendo?”
Certificando-me sempre de que acompanhava e entendia o que lhe dizia, continuava a conversa.
-“E como fica esse bebê sem uma mãe para cuidar dele? Você acha que poderia viver sozinho?”
Seu semblante mudara. Carregara-se de ternura e comiseração, enquanto concordava que aquele bebê carecia de uma mãe.
-“Então, se uma mulher aceitar cuidar desse bebê, por toda sua vida, ela não se torna mãe dêle?
Nova resposta afirmativa.
-“E se a mulher é a nova mãe dele...., ele não é filho dela?”
-“É.” Suas respostas passavam a ser lacônicas e diretas.
-“Então, esse é um filho do coração. Não nasceu da barriga da mãe, mas sua nova mãe o quis, como se fosse da barriga.”
Nova concordância.
-“Então..... o Edgard é filho do coração..... Faz diferença pra você ter um irmãozinho que seja da barriga ou do coração?.... O que ia mudar?”
-“Nada.”
Amorosa e sensível, sua resposta já soara abafada e comovida. Eliane continha, com dificuldades, as lágrimas que forçavam passagem.
-“Que bom filha. Mas.... o que você acha que o Edgard vai sentir, quando crescer e souber que não é filho da barriga da mãe?”
-“Vai ficar muito triste...”
-“Mas... você acha que ele vai ficar com raiva do pai e da mãe por causa disso?”
Naquele momento minha voz e meus olhos já traíam todo o esforço para conter tanta emoção.
-“Não.” A cada nova resposta, sua voz tornava-se mais baixa e lenta. Seus olhinhos, marejados, já não escondiam a comoção que assaltava seu coração, numa verdadeira premonição do que estávamos tentando lhe transmitir.
-“Escuta filha.... a mãe não pode ter filhos de sua barriga......, por isso o Edgard é filho do coração....”
Decorreram alguns segundos para que nossa pequena e indefesa, já golpeada pela dura verdade, rompesse em lágrimas, detonando qualquer resistência que nos restasse.
“Eu amo você mãe..... eu amo você pai....”
Espontânea e simultaneamente, abraçara-nos, firmemente agarrada, em choro largo e solto, assim permanecendo por alguns minutos que, para nós, tivera o gosto da eternidade.