A lição do flautista



               1. Passava da meia-noite, e eu continuava de olhos rigorosamente esbugalhados. Perdera o sono; o que, aliás, não era de estranhar. Vou repetir: sou mesmo chegado a descomunais e irritantes insônias.
               2. Inda bem que tenho, nessas noites maldormidas, bons e fiéis companheiros: meus livros. E a televisão? Esqueço. Porque, salvo alguns filmes pornôs, nem sempre de boa qualidade, os canais fechados e abertos poucas atrações oferecem aos seus assinantes durante as madrugadas. Ou estou enganado?
               3. Retiro de minhas estantes um bom livro, busco no meu I Phone uma musiquinha leve, e, caminhando com o autor escolhido, procuro enfrentar, numa boa, a massacrante insônia.
               4. Muito bem. Naquela noite, de miserável insônia, resolvi ler as crônicas de Heloísa Seixas, por ela reunidas no livro O Amigo do Vento.  Trinta crônicas do melhor nível. O prefácio é do seu marido, o escritor e também cronista Ruy Castro.
               5. Ruy Castro, sobre as crônicas de sua mulher, para lhes ressaltar a beleza, fez o seguinte e eloquente comentário: "Esse dom de escrever, de narrar, de envolver o leitor e hipnotizá-lo está visível nos 30 textos de que se compõe este livro."
               6. A crônica A lição de piano, da Heloísa, levou-me a escrever sobre o flautista de minha rua. Vou tentar trazer para minha crônica, em poucas palavras, o que disse a bela cronista.
               7. Conta Heloísa, que todos os dias, e durante muitos anos, da janela do seu apartamento, ela ouvia alguém dedilhando um piano. "As notas pingavam uma a uma, na mesma cadência, e assim continuavam por horas a fio..."
               8. Que a repetição constante das notas a exasperava, levando-a a fechar suas janelas e a ligar o som para não ouvir mais aquele piano. 
               Confessa, porém, que a "tenacidade e disciplina" da pessoa que produzia aquele som a espantava; e que sobre essa pessoa ela não sabia absolutamente nada. "Não conseguia determinar sequer de que apartamento da vizinhança o som provinha."
               9. Um dia - continua Heloísa -, uma amiga a convidou para um concerto de piano. Convite aceito. No auditório preparado para o espetáculo, as duas receberam a concertista, uma "senhora magra e elegante".
               10. Terminado o concerto - conta Heloísa - foi, pela amiga, apresentada à pianista. E que, durante a conversa, a concertista disse onde morava.  E Heloísa: "Não demoramos muito para descobrir a coincidência espantosa: era ela... que fazia as lições de piano que eu vinha ouvindo há anos."  Assim a escritora conheceu a pianista de sua rua.
               11. Li a crônica me lembrando do flautista de minha rua. E é sobre ele que, a seguir, lhe falo, meu dileto leitor. Rapidinho; para, de qualquer forma, não lhe chatear. 
               12. Do meu apartamento, eu ouvia uma flauta sem, contudo, conseguir localizá-la. Aquele som diário e quase ininterrupto, às vezes, chegava a me irritar, apesar da doçura dos seus acordes.  
               13. Eram músicas do Gonzaga e valsinhas do "tempo do ronca", assim as chamava o saudoso Francisco Petrônio, nos seus "bailes da saudade", muito apreciados pelos coroas.
               14. A procura do flautista, eu me debruçava na janela do meu apartamento, quase todos os dias. Mas, nem com a ajuda do meu binóculo, que é de longo alcance, conseguia descobri-lo.
               15. Resolvi descer e caminhar pela redondeza. De repente encontraria o dono daquela flauta sonorosa e plangente. E foi o que aconteceu.
               16. O flautista chamava-se Florênço e era o zelador de um prédio, a menos de um quarteirão do meu. Com seu uniforme azulado, Florênço, entre um saco de lixo e outro, tocava sua flautinha, feliz da vida.
               17. Parei para escutá-lo. Afinal, procurava-o, fazia mais de seis meses.  Sem se perturbar com a minha presença, ele prosseguiu tocando...
               18. Pedi que ele tocasse uma de minhas músicas prediletas, Maringá. Ele tocou a linda canção do Joubert de Carvalho tão bem que me vi ouvindo a flauta do Altamiro Carrilho ou a do Benedito Lacerda. Acreditem.
               19. Agradeci-lhe pelo momento de ternura, em meio a algazarra da cidade; do meu bairro, a Pituba. E dele me despedi convencido de  que o Florenço era um cara não apenas feliz, mas felicíssimo. 
               20. Seguia tocando sua flauta doce entre um saco de lixo e outro; curtindo humildemente o seu momento, sem se afastar  da sua realidade. Dando uma formidável lição. 
                    Assim conheci o flautista de minha rua: tocando sua flauta e mandando a "crise" pro inferno.
 

 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 22/05/2016
Reeditado em 10/12/2020
Código do texto: T5643525
Classificação de conteúdo: seguro