Conversa com o coração
Eu diria que tivemos uma bela e tensa prosa. Um daqueles despejos silábicos somente interrompidos quando a boca seca e os lábios racham.
Seguíamos caminhando e o silêncio ainda fazia um certo tom de pesar... um óbito oral. As palavras ainda deveriam estar escondidas e com medo de serem ouvidas. Sentia minha garganta sacolejar como abóboras em uma carroça sem suspensão.
- Vamos sentar ali perto daquela fonte? - ofereci eu, sem a menor ideia do que estava fazendo.
A renúncia ou talvez uma dúvida foi percebida quando parou. Ele parou e ficou estático, respirando lentamente. Alguns passos passaram por nós: o pipoqueiro, o artista de rua e um cachorro.
- Perto da fonte? - questionou ele depois de alguns segundos naquela posição.
- Sim. Gosto da aparência dela e...
- Fontes jorram água...
- Sim, mas esta está desligada.
- Você deveria suspeitar mais de coisas que têm funções predefinidas, pois se a função dela é jorrar água, isso pode acontecer em algum momento e nos molhar.
- Tudo bem...então, vamos sentar naquele banco de madeira.
Todas aquelas pessoas e olhares ao nosso redor transformavam a minha mente em uma grande fábrica de pensamentos e construções orais que em minutos externaria. Ele estava quieto, somente observando a cena.
O silêncio às vezes incomoda, mas pode ser o melhor som, porque só quem entende o silêncio sabe da sua importância. Mas... não era o caso. Estávamos ali para conversar e precisávamos disso com todas as nossas forças.
Não sabia por onde começar, então fui direto ao ponto que me incomodava mais: o tempo.
Comecei devagar, falando sobre a decadência de planos e a misteriosa velocidade que as conquistas passam. Parecem pedaços de algodão-doce, pois são coloridas, atrativas, mas o doce somente dura enquanto a saliva não traga o pedaço de alegria.
- O tempo te assusta tanto assim? Ele é só o tempo. Pode passar rápido ou devagar, ou ainda trazer decadências e conquistas que derretem em nossas mãos, mas é o tempo e precisa de nossa existência para que possa ouvir que passou rápido ou devagar e se provocou decadências.
- O que me assusta no tempo é seu tom misterioso. Para onde vão os dias? Existe algum pendrive que guarda todos os nossos sorrisos, lágrimas, gestos? Quantos grãos deixamos pelo caminho? Para onde vão esses grãos?
Basicamente, ao sair de casa, prometi para mim mesmo fazer com que a conversa tivesse todo um caráter reflexivo. Eu estava iniciando uma contenda imaginária, baseada no existir de opiniões e frente a um ser que pensava a vida diferentemente, mas plausível e admirável.
Ele continuou:
- Questionar o funcionamento do tempo é um tanto covardia de sua parte, pois o que importa ter todas essas respostas de uma vez? Se tratando do tempo, você deve respeitar o próprio tempo de sua vida. Com essas respostas ou não, o tempo continuará passando.
O que mais assusta na vida não é a própria vida, mas sim como vivê-la, pois já nascemos sabendo de seu desfecho. Como fazer? Uns se privam demais, enquanto outros são intensos demais. Uns questionam demais e outros são passivos e só rebatem a bola quando ela vem em sua direção. Por onde começar? Existe um começo para ser começado? Começo, meio e fim são reais? Somos contos? Somos fantasia?
Levantava e sentava enquanto ele jogava no ar todas aquelas numerosas palavras. Meus ouvidos ardiam e meus olhos não paravam de tentar encontrar algum sentido ali, ouvindo tudo aquilo. As pessoas haviam sumido. Meus exemplos mais concretos.
- Não é somente o tempo que me assusta, mas o amor contido nesse tempo também. Sim... as paixões são inevitáveis, mas poderiam ser somente paixões e ir embora a cada estação. Por que viram amor? Por que o amor sempre deixa marcas que a paixão nunca deixará? Seria o amor uma maldição social?
- Cada um vive o amor de uma forma, porque o amor é sentimento e não uma equação matemática. A equação existe, mas não para explicar o amor. Permitir-se + Encontrar + Apaixonar-se =?
A equação não tem resultado certo, pois ela pode ser interrompida no meio. Pode-se dizer que o amor surge dela, mas na hora que surge, ninguém pensa em futuras feridas ou futuras alegrias. Somente vive-se e sente-se.
Se definirmos o amor como vendaval, poderíamos dizer que chega de mansinho, nos arrasta, mas depois passa e permanece a calmaria. Poderia ser chamado de tempestade, mas seria como o vendaval. Prudente seria não dar nomes, porque quanto mais classificações, mais existe complexidade e entonação, a qual cada um pronuncia de uma forma distinta.
Passar no fim de uma noite por um lugar e ser atingido por um daqueles olhares que preenchem vazios e colorem escuridões. Sentir o surto da voz que entra pelos ouvidos e senta na beirada da alma, como se estivesse sentindo a brisa do mar é como ser elevado ao mais alto do sentir a própria vida.
Depois disso, o que invade é o desejo de continuar e ir mais fundo, retirando as placas de proibições e arriscando as próprias pernas ao passar por duvidosos pisos. O amanhã se torna tão certo, que a noite é só o começo de uma bela sinfonia.
- O que estou tentando dizer sobre o tempo e amor é que tudo isso é muito louco e confuso, mas reconheço que é necessário que haja toda essa vivência. Não existe uma regra, mas teimamos em colocar muitas regras sem saber das próprias regras. - continuei.
- Você está muito preso e focado em dividir tudo em fases. A única fase que importa é o sentir, pois sentindo, você tem metade de chance de quebrar a cara ou não.
- Partir o coração pode ser irrecuperável!
- Posso te lembrar sobre todas essas marcas? Você ao menos lembra?
Poderia ter saído correndo no momento em que ouvi aquelas perguntas.
- Lembre-me. A lembrança ajuda a crescer todos os dias.
- Estou dentro de você há tanto tempo, batendo e sendo a principal escuta de suas lamúrias. A sua sombra já desistiu de você, e por isso, estou sempre prestando atenção. Você me fez sangrar pela primeira vez quando teimou em conhecer aquela professora do ensino médio. Teimou em se apaixonar e em pensar nela todo o tempo. Eu, como mero componente de seu corpo tentei te avisar, mas sua agenda estava muito cheia na época e não consegui marcar uma reunião. Você vagou pelas ruas, pensando em como se aproximar e depois vagou, pensando em como esquecer. Eu estava aqui, batendo e recebendo o primeiro corte, pois você, sem a menor vergonha colocou a culpa em mim, dizendo que era um coração tolo. No ano seguinte, você estava fechado para qualquer coisa que ameaçasse seu ego. Estava fechado até para você mesmo. Tão fechado, que por algum tempo escutei você dizendo que não se lembrava de seus 18 anos. No último verão antes de seu tio-avô falecer, você quis se jogar no mar do subúrbio carioca e em uma daquelas conversas na porta de casa você se deparou com o par de olhos castanhos que jurou nunca ter visto. Olhos castanhos bem feitos e perfeitamente modelados para enxergarem o seu amigo. Você se chamou de feio por horas e depois colocou a culpa em mim, como se eu fosse um GPS que te levou para o endereço errado. Tudo bem... eu relevei. Você era bem idiota e precisava cair do seu alazão imaginário para entender que algumas coisas só servem para comporem a cena da vida. Nem sempre temos que ser os protagonistas desse filme.
- As lembranças continuaram por muito mais tempo. Algumas eu nem me lembrava. Realmente essa é a questão: não obter ou obter todas as respostas não impedem o tempo de seguir seu rumo... seu próprio rumo. Esqueci de alguns fatos que o tempo foi testemunha, arquivou e excluiu.
Depois disso tudo, voltei a reparar em minha volta e perceber que os passos que antes estavam passando por nós tinham retornado. O pipoqueiro jogava o resto dos milhos para os pombos, o artista de rua pintava o que parecia ser nossa conversa e o cachorro corria atrás do próprio rabo. Foi então, que percebi o que tinha ocorrido: não tinha mais meu foco neles, mas o tempo continuou a passar e as ações dos mesmos, assim como as minhas, continuaram também.
O ritmo das ações não dependeram de minha atenção. Na certa, o cachorro correndo atrás do rabo não estava preocupado em quanto tempo levaria fazendo aquilo, ou se perguntando o porquê de nunca conseguir pegá-lo. Ele simplesmente tentava e estava sendo feliz, pois sentia que isso deveria ser feito.
- Mesmo com todas essas marcas, ainda te pertenço e aprendi a gostar disso. Você tem uma alma que sempre me acalenta em dias de frio e chuva.
- Sinto que tudo é parte de uma grande história. O que deveria eu fazer para não te proporcionar mais dores e feridas? - perguntei com tom de conclusão.
- Deveria... confiar mais em mim e ouvir a música que toco todas as manhãs, mas sem acreditar que você a compôs. O amor é o tempo são imortais e sempre existirão. É errôneo tentar lutar contra eles, pois assim como eu, já viram muita coisa, mas você muitas já esqueceu, e com isso, pode perder uma óbvia invencível luta e acabar sendo extinto.
O dia estava em seu desfecho. O último dia de Novembro... meu mês favorito e o penúltimo antes do ano dar adeus e nascer mais uma oportunidade de ser menos preocupado e mais orientando em sentir, viver o tempo e amar o amor.