Sobre gênios, óculos e detalhes

Gay Talese é um dos maiores nomes do jornalismo mundial. Ele cobriu a marcha de Martin Luther King e os conflitos raciais nos Estados Unidos dos anos 1950 e 1960. Ele escreveu Fama e Anonimato, que mostra as curiosidades e os personagens principais de uma Nova York linda e mítica da década de 1960 (aqui você encontra um dos melhores perfis já escrito, “Frank Sinatra está resfriado”, em que o autor faz uma mini-biografia do cantor através do contato com as pessoas mais próximas a Sinatra, uma vez que não foi possível entrevistá-lo). Além disso, ele também escreve Vida de Escritor. Aqui, ele se depara com antigas pautas, que não puderam ser levadas adiante, seja por que nunca renderam efetivamente boas matérias ou por que alguns editores não quiseram publicá-las. Talese passeia pelos seus textos esportivos, pela fixação em desvendar o que há por trás de um endereço amaldiçoado de um restaurante em Nova York, pelo pênalti perdido por uma jogadora chinesa na final da primeira Copa do Mundo de Futebol Feminino. Em um primeiro momento, são textos que qualquer repórter ou escritor poderia fazer. Mas não da forma que Gay Talese faz. A sua escrita é tão marcante, sua narrativa é tão envolvente que em menos de meia página o leitor já está ligado intrinsecamente ao assunto, ao autor e ao texto. Cada palavra, cada vírgula parece pulsar na mesma vibração dos átomos de quem lê. Ler Talese é uma experiência única e cheia de vida.

José Saramago dispensa apresentações. Prêmio Nobel de Literatura em 1998, o português arrebatou um mundo leitores com suas histórias e seus livros. Palavras densas, intrincadas, de um lirismo único e capazes de fragmentar a alma e a psique humana, nos trazendo o que há de mais puro na essência do ser humano – entenda que aqui, não é exatamente a pureza que estamos falando, mas sim o estado mais bruto da “humanidade” de alguém. Diálogos sem travessão, requinte, estilo único. A obra de Saramago é de uma beleza que impressiona, não importa se a história se passe nos dias atuais ou em Portugal do século XVI. A leitura do mundo do escritor português marcou muita gente ao redor do globo – e eu sou apenas mais um dos admiradores do gênio.

Nelson Rodrigues é um dos maiores – senão o maior – autor de teatro da história do Brasil. Dono de uma visão única, moldada por uma vida repleta de tragédias, o pernambucano radicado no Rio de Janeiro era, e ainda é, capaz de chocar uma plateia inteira com diálogos inteligentes e cenas de forte cunho sexual. Nelson possuía um olhar clínico e especial sobre a vida, a cidade (qualquer uma delas), o amor, a vida. Vivia em um estado de eterna paixão por tudo, especialmente as mulheres. Assim como Saramago, escrevia sobre a natureza selvagem do ser humano, principalmente as facetas que sabemos que existem, mas negamos piamente para nós e para os outros. A morte, presença garantida na vida de todos, tinha cadeira cativa nas histórias que Nelson contava, seja como Suzana Flag, seja em A vida como ela é, seja no teatro. A dama rejeitada por todos era solenemente cortejada por Nelson Rodrigues, que a entendia muitíssimo bem. Sem dúvidas um dos maiores escritores que já passaram pelas terras e jornais brasileiros.

E o que eles têm em comum? A habilidade de transformar em palavras a vida que acontece ao seu redor, mesmo colocando-a em algum ponto da história, como Saramago fazia de forma magistral. É necessário um poder de observação quase sobrenatural para perceber as pequenas nuances que a vida nos mostra constantemente. Desde um endereço fadado ao fracasso (você vai entender do que estou falando assim que ler Vida de Escritor, de Gay Talese) ao papo informal com os amigos (Nelson Rodrigues tirava muita coisa para os seus textos em conversas extremamente informais), tudo contém uma pequena fração do mecanismo que faz as coisas do mundo acontecerem. É aí que a vida acontece, e sempre foi e sempre será necessário que alguém narre de forma única e apaixonada, como esses três monstros fizeram.

Contemporâneos do século XX, eles viveram quase os mesmos momentos da história de formas diferentes, através de culturas diferentes. Observaram o mundo através dos próprios óculos e nos mostraram o quanto aprender com o ponto de vista do outro é importante. O quanto os detalhes são importantes. O quanto observar é melhor do que falar demais. Obrigado pelos ensinamentos, mestres.

Rafa Lima
Enviado por Rafa Lima em 19/05/2016
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