Quase fui crucificado

      Um dia, meu televisor deu defeito. 
      Apesar dos protestos do pessoal de casa, fui adiando o seu conserto. 
      As mulheres viviam, com indisfarçável revolta, reclamando da sua "péssima imagem"; principalmente na hora das novelas. E resmungavam: "A Regina Duarte, a Ana Paula Arósio e o José Mayer  estão irreconhecíveis."

      Eu ouvia os protestos, e me mantinha calado; como se nada estivesse acontecendo no seio de uma família que sempre rezara e vivera unida. Mas, a rigor, já começava a dar razão ao pessoal.

      
      Mormente quando descobri que o Othon Bastos aparecia, nas novelas, completamente desfigurado.  Logo o Othon, meu velho conhecido? 
      Durante anos, fomos hóspedes da pensão de Dona Mariêta, na estreita Faísca, uma tradicional rua de Salvador. 

      Recordo-me, que certa madrugada  
 acordamos com um ônibus praticamente dentro da  pensão. 
      Por pouco o quarto do Othon, no segundo pavimento do cansado casarão soteropolitano, não ruiu. Isso aconteceu lá pela década de 60.

    Prosseguindo: instalara-se uma verdadeira bagunça no meu televisor.  Ranheta, eu teimava em adiar o seu conserto, esquecido de que, naquele momento, ele era o único funcionando em minha casa!

      Não suportando mais os arrufos da parentela, resolvi levar o aparelho para oficina, que,não ficava tão distante de minha residência; três quarteirões; nada além disso!

      Apesar da promessa de que em 72 horas, no máximo, ele me seria devolvido, na oficina ele ficou durante dez dias.  Mentiu o técnico. Quase fui crucificado pela galera telespectadora do meu, àquela altura, conflagrado lar!

      Enquando o televisor permaneceu no conserto,  um silêncio de clausura dominou minha casa. 
      Tão profundo, que se podia ouvir o bater de asas de baratas vadias e afoutas, em vôos rasteiros, para desespero de Ivone, que dá escândalos ao perceber a aproximação desse desditoso inseto.

      Perguntei a mim mesmo como aproveitar aqueles preciosos momentos de silêncio e sossego. Cheguei a conclusão de que devia conversar com a família sobre nossa família:  redescobrir nossas raízes; nosso passado; nosso presente; nosso futuro. Há muito não fazia isso. Ou nunca fizera?

      (Hoje, nos lares, pouco se conversa sobre a família.
      Alega-se falta de tempo; de espaço; ou se dá esfarrapadas desculpas.  Por conta disso, os mais novos pouco sabem sobre os mais velhos.
      Não raro, a memória da família limita-se ao manuseio de desbotadas fotografias, encontradas, por acaso, no fundo de esquecidos baús.
     Por isso, não surpreendem perguntas como esta: 
- "Quem é este? Meu bisavô? Não... Como ele se chamava?"
     Estão desaparecendo os contadores de histórias; os cronistas da família. )

      Claro que meu projeto não foi aceito de primeira.
      Todos queriam mesmo era saber por onde andava o televisor. Tive um trabalho danado para acalmar os ânimos. E só consegui, depois de mostrar, por A mais B, que a culpa pela domora não era minha mas do técnico; que passou a ser impiedosamente malhado. 

      Dez dias depois, o televisor chegou, e a paz, finalmente, voltou a reinar no meu ninho . 
     Todo mundo continuou de olho na televisão; eu, inclusive. Mesmo sabendo, que nem sempre é  verdadeiro o que a TV diz, vinte e quatro horas, ao  telespectador. 



Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 13/07/2007
Reeditado em 16/01/2008
Código do texto: T563828