Dores, linhas e palavras
A literatura não se cala. Uma vez escrita, a voz das palavras se eternizam numa performance entre o delírio e o torpor da sanidade.
As palavras guerreiam para sempre. Uma vez escutada, pode ecoar em outro hemisfério. Contrariando o caos que nos destroem muitas vezes por completo.
O escritor conversa com os mortos. Pois os vivos não entendem a língua de quem morre. O escritor tem como única religião: sua fé na transformação do ser humano pelas palavras. O escritor é um romântico, um pobre coitado. Digo isso, porque falo de mim, e não de todos os escritores. Não os conheço, mas sei que padecem dessa angústia de alguma forma.
Porque a vida é um convite diário para a morte.
E as palavras são estancas dos cortes profundos a navalha suja e fria de um barbeiro sem amor pelo ser humano. O sangue sempre escorre da consciência até o coração, impedindo-o de bater em seu ritmo saudável. A asfixia é inevitável como a razão que entorpece o espírito. Deixando o corpo febril e prostrado.
Mas o caos sempre foi a primeira ordem. Desde o surgimento do Universo e suas galáxias, a dor estava sufocada na escuridão das trevas que ofuscavam a visibilidade da energia e luminosidade do grande sol. A luz incomoda os que estão no escuro.
Eu, que converso com os fantasmas desde cedo, aprendi que não há o que temer, com exceção da sombra da morte, pois ela é bipolar ou é a vida que não sabe o que fazer da gente?
Eu, que sempre gostei de me sentir invisível, me sinto livre falando sozinho com as mãos e as linhas. Palavras e pensamentos ebulem-se em constante movimento, buscando algum signo desta linguagem tão empobrecida e sucateada.
Eu, que gosto de falar com espíritos vizinhos em minhas entranhas esquecidas, adoro saber uma nova história de um atormentado preso em minha memória.
Arrancam de mim, sangue rubro e despertam sonhos apodrecidos. Almas vagam por aí em busca de descanso no descaso de um mundo perdido.
É o apocalipse da linguagem.
Pensamentos buscam um caminho. Não há caminho. Há estradas esburacadas a serem desbravadas por aqueles que não temem a morte mesquinha. Histórias estão sendo sufocadas pelo senso comum. Há energia se transformando em manobra de um golpe contra si mesmo.
O consumismo da linguagem é a vida vazia de pensamentos e as emoções plastificadas pelo regime militar estético compõe um corpo cheio de etiquetas, marcas estéreis na alma e um sorriso corrigido por um aplicativo de smartphone. Faz parte do combo de otário.
Os mortos são extremamente educados e gentis. Choram em silêncio enquanto os vivos se reúnem para encenar os seus monólogos.
Não há alguma diferença na forma de existência deles. Eles têm consciência de que estão mortos. Nós ainda não.
Os mortos pesam sobre suas lágrimas aquilo que não fizeram. Tento informá-los que por aqui as pessoas não sabem ainda o que estão fazendo. Nem ao menos sabem o que são e no que se tornaram. Falo que vivemos em um período de delírio coletivo total. Eles riem.
Gostariam de ter uma chance para poder fazer diferente. Digo que a vida é uma só e esse desejo de fazer diferente é difícil quando você quer ser igual a todo mundo. Autenticidade requer silêncio e solidão. Reflexão e entendimento. Digo que não é para se ocuparem disso. Não há nada mais que eles possam fazer agora. A lamentação é inútil e de nada serve se eles não escreveram as dores de suas lágrimas. Eles me olham com seus semblantes pesados e me pedem que eu escreva. Entendo como uma ordem.
Tenho a maior admiração e compaixão pelos mortos. Sinto um vazio ensurdecedor quando eles se afastam de mim enquanto faço o que me mandam no trabalho.
Estendo minhas mãos e digo:
Suas sombras são as mesmas que as minhas. Estaremos juntos sempre que houver dor, palavras e linhas. Narrarei uma só história.