Pela porta da cozinha.
Sentada na mesa do bar e aguardando, ansiosa, que o cantor cantasse “La belle de jour”,estava ao redor de três ótimas companhias: um par de amigos e a formosa lua.
Ao lado direito, uma mulher de trinta e três anos, com cabelos negros, pernas cruzadas (e direcionadas para a mesa ao lado), com ombros à mostra e a chave do carro engatilhada, caso a conversa não lhe agradasse.
Ao lado esquerdo, um homem de vinte e poucos anos, com roupa social, sapatos pretos, olheiras escuras, olhar atento à cada movimento ao seu redor, usava suas mãos com precisão para segurar os talheres, o copo de cerveja, e vez ou outra alisava sua calça cinza, com movimentos para cima e para baixo.
Música alta, comida boa, cerveja gelada, o som dos talheres disputavam com o som das gargalhadas, com as cadeiras sendo arrastadas, com as buzinas dos carros passando a cada segundo. Havia uma fusão de cheiros, o cheiro da carne, o shampoo forte da mulher que estava passando, o cheiro de suor do garçom, que trazia na blusa o resto de fumaça de cigarro do cliente que estava sentado na beira da calçada, do outro lado da rua.
Cada coisa tinha uma vibração diferente e chamava minha atenção, até o momento que escutei a seguinte frase: “Eu gosto dela, o suficiente para olhar para o lado ”.
Obviamente, minha cabeça deu um nó, e coloquei-me a pensar: “quando será que ele decidiu ou percebeu ou entendeu que o que ele sentia era o suficiente para pedir sua carta de alforria?”.
Será que em uma bela manhã, acordou e virou-se para o lado a fim de parar o despertador, e ao apertar o botão, ouviu aquele silêncio. Nesse instante, olhou para o lado e ainda tonto de sono, pensou: “o que estou fazendo aqui?”. Não, não era uma ressaca alcoólica, era uma catarse despertando-o para a realidade tão temida, o fim do encantamento.
Mas, quando isso aconteceu? Será que foi quando ele amassou a pasta de dente na parte de cima do tubo? Será que foi quando ela colocou a calcinha molhada no Box do banheiro? Será que foi quando ele a trocou pelo o futebol? Será que foi quando ela apertou aquela espinha? Será que foi por que ele trocou o nome dela por um nome que ainda lhe provoque sensações que só ele sabe e entende de onde surgem? Será que foi quando ela percebeu que suas curvas tomaram proporções não desejáveis? Será que foi por que ele repetiu a mesma roupa todos os domingos? Será que foi por que agora seus olhares estão longe, mesmo estando tão perto?
Afinal, em que momento nós percebemos que não pertencemos mais ao mundo de quem um dia amamos, e que hoje somos dois desconhecidos em meio a uma multidão que cada vez mais nos separa? Multidão de pessoas que habitam nosso passado, nossos fantasmas do medo, do receio, da covardia, da comodidade ,de amores que não deram certo , de frustrações ,de coisas que que povoam nosso imaginário. Ao permitirmos que essa “multidão” entre em nosso quarto, uma parte de nós sai pela porta da cozinha.
Será que isso aconteceu com Ele? Será que o sentimento que um dia foi intenso, agora é o suficiente para que ele vá embora, pela porta da cozinha?
Havia momentos da conversa em que eu olhava para ele e percebia seu olhar indo embora, como quem põe uma mochila nas costas e vai para a estrada, tornando-se amante do vento e da poeira. Um olhar que o definia com um homem de passos largos, aperto de mãos forte e uma autoconfiança invejável.
Acho que quando ele “mediu” a intensidade de seus sentimentos, em verdade, o que ele queria dizer é que há coisas muito além de um “eu te amo”. Como contas a pagar, passeios com o filho no fim de semana, horas de lazer com amigos, cerveja no fim do expediente, profissão... Enfim, ele conseguiu algo, que alguém como eu – uma apaixonada incondicional por poesias, café quente e afins – jamais conseguiria, EQUACIONAR seus sentimentos.
E como ele conseguiu tal feito? Muito simples: a lógica dele foi entender que uma saudade, ou ter um alguém pra quem voltar no fim do dia é muito bom, mas, se isso não for possível, com certeza ele sobreviverá.
Luciana Tapajós.