Assim ou ...nem tanto 45
O Pastor
Da terra veio o som cavo da montanha, o sinal das águas à procura de caminho. Percebia-se a alegria da relva, delicada, verde tenro, levemente abanada pela brisa, no trajecto do rio escondido. Este era um lugar certo para quem cai no desamparo dos dias e se apaga na memória dos que amou e desapareceram ou daqueles que, ficando, cortaram todos os liames do afeto. O homem sem qualquer boca a dizer-lhe do ar e do tempo, sem dedos a alisar-lhe o cabelo, sem corpo por onde corra a sua vontade de mar e sem o abismo do sexo que dá determinação e arrasta, pouco vale. E ele nada valia, perdidas as asas de viajar pelos sonhos, abandonado o jeito de rir, sem água que o dessedentasse, sem força para voltar. Quem erra e desiste do regresso, ganha raízes como as silvas e fica a penar andando, fica perdido em lugar que sabe, é, enfim, o sino sem badalo que toca, mudas Avé Marias, canções de letra trocada que ninguém corrige, nem o coração, o único que sabe o que se passa e o único que escuta. Rodou o corpo no terreno aberto em sulcos e percebeu que o vento se assanhava para lá da cerca. Em breve a noite cobriria tudo e ele ficaria mais certo com o escuro, sem olhos para o vigiar, sem palavras que não pensasse. E rolou até à cerca. Assobiou para chamar as cabras, distribuiu a ração e fechou a cancela. Esperou que o sol baixasse e viu um ponto claro a deixar o vale e a iniciar a subida. Fosse quem fosse seria a voz de outro tempo, companhia. Cresceu a silhueta e se fez gente, proximidade, calor. As mãos finas nas suas, o eco do passado, o caldo e a cama repartidos. Como era bela a noite num casebre da serra junto à lareira.