EU ESTAVA CEGA

Hoje Deus colocou em meu caminho uma menina linda, linda.

Claro que as coisas não acontecem por acaso. Todos nós, que estávamos

naquele ônibus, nos emocionamos. Duvido que uma daquelas pessoas não tenha

ficado tocada com aquela cena.

São comuns cenas como esta numa metrópole onde existem tantas pessoas

desprovidas da visão física.

Ela chegou docemente, mansamente e foi conversando conosco. Estava

trabalhando. Vendendo umas canetinhas. Encostou-se num banco e falou com a

voz quase infantil.

Eu fiquei ouvindo-a e em meio a agitação do transito, aquele barulho

infernal dos automóveis; a voz dela era o único som audível para meus

ouvidos e meu coração. Ela disseque estava vendendo as

canetinhas por um real. Eram emborrachadas e na cor azul. Disse que quem

desejasse ficar com uma que se comunicasse com ela pelo tato. Eu

imediatamente peguei uma nota e toquei naquele braço miúdo. Entreguei o

dinheiro e desejei que muitas mais pessoas comprassem canetas para que ela

pudesse ficar feliz no final do dia.

Desci num ponto de ônibus e fiquei a esperar pelo outro que devia passar.

Deus ainda queria me mostrar mais uma coisa. A menina também desceu no

mesmo ponto. Ela foi caminhando com sua varinha e muito próxima de mim um

senhor lhe perguntou se desejava algo.

Ela lhe perguntou se estava no ponto da Brigadeiro. Ele disse que não, que

estava num ponto entre a da Estação Brigadeiro e da Estação Trianon. Ela

disse:

-- Meu Deus, mas não é possível. O motorista me garantiu que eu iria descer

no ponto que citei. O que faço agora?

O senhor, bem idoso por sinal, se ofereceu para ajudá-la a atravessar a

Avenida Paulista para que então ela pudesse então tomar um ônibus e voltar à

Estação Brigadeiro.

A jovenzinha demonstrou toda a fragilidade de seu estado e lhe disse:

-- Meu senhor, eu queria mesmo era voltar a pé; se o senhor diz que não é

tão longe.

Ele colocou o miúdo braço dentro do seu e disse simplesmente:

-- Vamos meu amor, que eu a levo até lá.

Ela perguntou se não iria atrapalhá-lo e ele lhe garantiu que não. Fiquei olhando o caminhar daquele senhor idoso alquebrado pelos anos e aquela menina

que está vivendo num mundo tão diferente do que nós vivemos. Um mundo

preenchido com coisas que fogem do nosso cotidiano.

Senti ao vê-los caminhando ondas de luz vindo em minha direção. Eram dois

anjos aqueles. Vestidos com a roupa carnal, mas eram anjos sim. Anjos que eu

estava precisando tanto encontrar.

Eu estava cega com meus dois olhos perfeitos enquanto aquela linda menina

enxerga um mundo que eu não estava conseguindo alcançar.

Ela, com seu trabalho, com sua fragilidade, seus enormes olhos, sua voz

doce, vai nos mostrando o que nossos corações tantas vezes endurecidos

custam a enxergar. Um mundo novo que podemos alcançar quando mudamos nossa

forma de pensar.

SONIA DELSIN
Enviado por SONIA DELSIN em 12/05/2016
Código do texto: T5633274
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