Assim ou...nem tanto 44

Rosalina

Ainda acendera a vela, ajoelhara, deixara que as lágrimas corressem e, a seguir, quieta, afeita à penumbra do templo, observou a imobilidade do santo, as falsas lágrimas de sangue, a boca aberta para o choro parado, os olhos ao alto. E esperou dele um milagre, um consolo, um gemido e ficou a murmurar orações decoradas e promessas até que, cansada, deixou que o espírito se arredasse das rezas e começasse a ver os detalhes da imagem. Lacrimoso e fraco de corpo, pés bonitos, boca de mulher. Seguiu-lhe o olhar e deu com o buraco no estuque do teto baixo da nave lateral e analisou o desenho que a humidade deixou nas diferenças da cor, nos fungos da humidade, na poeira que se fora acumulando por ali. Gente descuidada, pensou das beatas que cirandavam ao redor do padre. Padre folgado, este, que nunca pensou em restaurar nem o santo nem o teto, nem os vitrais partidos da rosácea. Sabes que mais, Rosalina? Daqui não vale a pena aguardares solução para os teus problemas e para a falta de fé. Já não subo nem desço nada de joelhos e poupo-me a ter de castigar o corpo que já trago moído do trabalho. Nem este nem outro santo podem anular-me o passado e é tarde para tirar a barriga, meu rico menino que amo só de o trazer, de lhe inventar o rosto, carinha de anjo, boquinha rosada, papudo de mãozinhas. Já não quero saber de críticas, já nem me importo que me apontem. Queria o pai do menino, homem fogoso, moço forte. Queria o casamento a seguir ainda a tempo de lhes trancar as bocas venenosas mas até isso não via jeitos de ajuda no piegas do santo. Aconchegou a si o xaile, mirou a imagem para uma confirmação de impotência, ergueu a cabeça e, sem dar por isso, disse alto: tanto me dá, quero este filho. E decidida, acreditando em coisas mais certas, sem se benzer, arrastou as chinelas pelas lajes do caminho até ao dia esplendoroso.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 05/05/2016
Reeditado em 05/05/2016
Código do texto: T5626402
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