DESCENDO A SERRA

Em seu corpo maduro e pesado, deformidades típicas da idade o afastam de espelhos, filmadoras e câmeras fotográficas. Há três anos não há fotos dele em lugar nenhum. Para as comemorações do dia dos pais na escola, os filhos levaram pela quarta vez um retrato que o mostra de longe, sentado no sofá, com uma xícara de café na mão, tirado há quase cinco anos: o cabelo ainda preto, o corpo mais magro e musculoso, a alegria da juventude ainda brilhando no sorriso e no olhar. Não quer nenhum registro em imagens de sua maturidade, do que ele vê como o início de uma queda vertiginosa serra abaixo (a decadência que ele tanto temia na juventude e que, agora, é uma realidade assustadora: a decadência do corpo).

Aos 41 anos, acredita estar bem em cima da linha divisória entre a juventude e a velhice. Seu metabolismo é mais lento, está barrigudo, sua memória não é a mesma da época de estudante, seu cabelo está ficando branco, rugas se acentuam ao redor dos olhos e da boca, seu olhar está triste, apagado; já não sente o mesmo prazer que sentia antes no trabalho; quer mais tempo para si e para a família, para ler, ouvir música, não fazer nada.

A morte lhe acena de perto, sussurra-lhe ao pé do ouvido coisas que ele não entende, mas que lhe transmitem paz, serenidade e um desejo imenso de aproveitar a vida como nunca aproveitou, de cortar da sua lista de prioridades tudo que não lhe dá prazer, tudo que o aprisiona e aborrece. E quer começar já. O momento é este. Sacrifícios e sofrimentos agora só prejudicariam um presente que pode não se tornar futuro, pois a queda já começou, e a descida é cheia de obstáculos.

Mas ele sente que falta alguma coisa, um ingrediente essencial para o equilíbrio que ele tanto procura em sua vida, e que, só agora, deitado na grama do quintal, observando as nuvens que passam, ele descobre qual é: a aceitação do seu corpo, da sua idade, do seu momento.

É isso. Afastar-se o máximo possível dos jogos e artifícios da vida e deixar-se invadir pelo prazer de viver não é suficiente para alcançar a paz de espírito que ele tanto quer. Ele sente que precisa fazer as pazes com o seu corpo, que ainda é saudável e pode continuar assim por muitos anos, apesar do amadurecimento, da inevitável velhice que, feliz e em paz, ele quer viver.

Está agora nu diante do espelho. Este é seu corpo aos 41 anos. 41 anos de história. A sua história. Só ele a viveu. Só ele sabe. É a sua vida.

Respira fundo, enquanto se olha, já sem medo. Sente o rosto com as pontas dos dedos, suas cicatrizes e rugas, suas bochechas redondas e levemente caídas. Toca de leve a barriga disforme, o excesso de gordura no peito e no pescoço, a cintura larga, as coxas enormes, desproporcionais... Não está tão feio quanto pensava.

“Este sou eu aos 41 anos”, diz para si. Seu olhar ainda está cheio de vida, sua alma ainda tem muito a oferecer. Sua saúde é boa. Precisa perder peso, e vai perder, mas sem desespero e sofrimento, sem querer atingir padrões de perfeição, como muitas pessoas que ele vê na academia, eufóricas, tomadas por um frenesi de exercícios e dietas absurdos, comparando-se umas com as outras, sofrendo para atingir a meta, manter o padrão. Não, isso não.

Viver os dias um de cada vez, aceitando o que se é, fazendo o que se gosta, cuidando da saúde (mas sem desespero). Esse é seu objetivo agora. E está feliz por tê-lo descoberto.

Olhando-se no espelho, diz para si: “Somos como nuvens passageiras, águas que seguem seu curso em direção ao mar... E como dizia Fernando Pessoa: ‘Mais vale saber passar silenciosamente. E sem desassossegos grandes’”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 01/05/2016
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