"Purrinha"
“Purrinha”
(*) Aparecido Raimundo de Souza.
(**) Sobre o texto.
GABRIEL, NERVOSO, virou a cerveja de uma só vez, depositou o copo sobre a mesa, soltou uns arrotos esquisitos. Enquanto coçava a cabeça, berrou eufórico:
— Borges, me dá dois.
— Você pediu dois, Gabriel?
— Sim, Borges. Dois.
— Lona, Gabriel...
— Lona?
— Isso mesmo, Gabriel. Lona.
— Mostra.
— Lona... Abre a sua, companheiro.
Quando Gabriel abriu, a cara de alegria do maquiavélico Borges não deixou esconder a satisfação que o invadia.
— Quer continuar apanhando, amigo Gabriel?
— Não, Borges. Pra mim basta. Você que é bom de conta, vê quanto estamos devendo...
Borges mentalmente puxou os gastos. Falou:
—... Dezoito geladinhas. Fora as que bebemos antes de sentarmos aqui. São mais seis. Total, vinte e quatro. A três reais e dezoito centavos, como está no cardápio, dá um total de setenta e seis reais e trinta e dois centavos. Metade disso, trinta e oito reais e dezesseis centavos. Pega ai. A próxima é por minha conta.
O velho Gabriel coçou os bolsos e puxou um bolinho de notas amarradas num elástico. Fez sinal ao garçom.
— A conta...
O barman em minutos voltou com o total das despesas.
— Credo! – O que é isso?! - Estranhou Gabriel ao se deparar com o elenco geral do consumo.
— A sua conta, senhor...
—... Não são vinte e quatro cervejas?
— Sim, vinte e quatro.
— Qual o valor de cada uma?
— Três reais e dezoito centavos.
— Acompanhe meu raciocínio: três reais e dezoito centavos, vezes vinte e quatro garrafas, somam setenta e seis reais e trinta e dois centavos, concorda?
- Plenamente, senhor.
— E por que o prezado me apresenta um dispêndio assim tão alto? No que eu e meu amigo aqui gastamos essa diferença que agora, por pouco, não me faz o coração saltar pelo esbugalho dos olhos?
O profissional da bandeja sorriu e apontou as outras notas grampeadas.
— Olhe senhor. Além das bebidas, foram servidos três filés com fritas, cada um a dezoito reais e cinquenta centavos, duas porções de frango a passarinho, também a dezoito reais e cinquenta centavos e, uma bandejinha com pão de alho a doze reais e...
—... E...?
—... Estou incluindo no montante vinte por cento dos serviços de garçom e mais o couvert artístico.
— Que couvert artístico?
O rapaz muito polidamente pediu aos dois cidadãos que olhassem para os fundos do estabelecimento. Num canto escondido, sobre um pequeno tablado de madeira, em forma de coração, um sujeitinho de estatura mediana, gravatinha borboleta tocava teclado e cantava MPB.
— Espere um pouco. Tenho que pagar pelo que não usei?
— O senhor me desculpe discordar, cavalheiro. Não usou, mas ouviu...
—... Não ouvi. Jogava palitinhos com meu amigo. Não prestei, ou melhor, não prestamos atenção ao resto. Não é Borges?
— Positivo.
— Pois é. Vocês podiam não estar ouvindo, mas o músico estava, ou melhor, ainda está tocando. Ouçam essa canção. É um grande sucesso de Roberto Carlos.
— OK, mas entenda, não é para nós que ele canta.
— Senhor, infelizmente o couvert tem que ser cobrado. Sinto muito, acredite. O valor do couvert, a cem reais por pessoa, somam mais duzentos reais.
— Prezado, o dinheiro que disponho em espécie só cobre as bebidas, e no pior dos mundos, os tira-gostos que mandamos para a barriga. Não consumimos o cantor...
—... Perdão, cavalheiro. Consumiram. Ele cantou e ainda canta para os senhores. Ratificando: canta para todos.
— Companheiro, ele canta para o pessoal que está ocupando os salões. Nós estamos no saguão da retaguarda...
—... Que pertence, por extensão, aos compartimentos principais do restaurante. Resumindo, isso quer dizer que sentados aqui ou lá dentro, não importa. O couvert vale para todos os ambientes. Inclusive para este puxadinho.
— Meu Deus, e agora o que faço? Trouxe algum dinheiro com você, Borges?
Borges, esperto e safo, bateu nos bolsos e tirou o corpo fora.
— Tudo o que tinha lhe ajudei rateando a metade. Comigo, disponível, algumas moedas de cinco centavos e duas bolinhas de naftalina. Ah! Ia esquecendo: um passe do metrô com duas viagens, para o trabalho, na segunda. Mande chamar o chefe dos garçons – Pediu Borges, tentando enrolar o funcionário.
— Para quê, Borges?
— Fale com ele.
— Se for sobre a conta – atalhou o garçom - não adiantará nada.
— Então me traga o gerente.
— Não resolverá a questão.
— O dono do estabelecimento?
— Esse, menos ainda. É duro na queda.
— O que fazemos?
— Simples: o senhor paga as despesas e fim de papo. Se não tiver em espécie, aceitamos todos os cartões de crédito.
— Meu amigo, vou ser bastante sincero e claro. Vim desprevenido. Não sabia que encontraria o Borges em plena sexta-feira. Foi puro acaso... Daí...
—... Veja bem. Quando o senhor encontrou seu colega (desculpe a intromissão) deveria ter imediatamente observado, em primeiro lugar, seus fundos. Em segundo, advertido a seu amigo, que se achava desprevenido. Agora o senhor está triplamente desprevenido. Trocado em miúdos: um sujeito desprevenido uma vez, não vale nada, duas vezes desprevenido, nada vale três vezes desprevenido, não vale absolutamente nada, sem falar que se embrenhou mato à dentro sem a companhia de um cachorro...
—... Acaso está me gozando?
— De maneira alguma, senhor. Desculpe...
Borges ao lado, observava e pensava rápido. Precisava sair de cena. Resolveu ir ao banheiro enquanto os dois não chegavam a lugar nenhum. Logo as vias de fatos seriam inevitáveis.
— Enquanto vocês não acordam para um consenso, darei uma chegadinha ao W.C. Licença...
Esperto e maquiavélico, todavia, Borges antevendo que a situação não acabaria bem, ao invés de rumar aos sanitários, meio do salão, armou um esquema e imediatamente colocou em prática. Não pensou duas vezes. Não dava tempo. Como um gato encurralado, deu um pulo se impulsionando por cima de mesas. Nessa rota, derrubou uma série de cadeiras, levou pessoas ao chão e tropeçou numa garçonete que caminhava em direção oposta, com um amontoado de pratos sujos. Os clientes, surpresados, começam a improperiar palavrões os mais cabeludos e desaforados. Um princípio de tumulto se agigantou, tomou forma sinistra. Borges, contudo, atingiu o objetivo. Por uma das janelas enormes ganhou a rua, deixando a galera de frequentadores boquiaberta e estaticamente perplexa.
O velho Gabriel, coitado, entalado e sem saída, continuava as voltas com o garçom e a intrépida e indigesta continha. Ao pressentir, porém, pelo burburinho, que se formara na ala principal, e mais, tomando consciência de que o parceiro pinoteara, e o deixara com a bunda do cu na reta, optou seguir o exemplo, aproveitando o vácuo deixado pelo sem vergonha do amigo. Amigo da onça, diga-se de passagem. Num descuido de milésimos de segundos empurrou o pobre do garçom, que caiu, de costas, estatelado sobre uma mesa ocupada por uma família inteira, indo todos ao chão, numa espécie de efeito dominó em câmera lenta. Balburdia formada, Gabriel disparou como uma bala para uma das janelas, e, como Borges, saltou para o abraço. De cabeça, bonito, suave, leve e solto, elegante, rindo a mais não poder, não só pela coragem repentina, como igualmente, pelo “beiço” que deixaria para trás.
— Ponha na fatura do seu Abreu. — berrou sarcasticamente enquanto aproveitava o breve rasante. — Se ele não pagar, nem eu...
Antes que aterrissasse na calçada de cimento, o imprevisto. Dois seguranças brutamontes, de terno preto (que, em vão, saíram no encalço do arisco Borges), já o esperavam, de braços abertos, com as boas vindas da casa, a conta de consumo e uma viatura da policia militar que circulava por ali.
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 63 anos, é jornalista.
(**) do livro “Ligações perigosas” 2016. Editora AMC-GUEDES Rio de Janeiro. 140 páginas.