Concreto e abstrato

O que enquadra minha câmera quando tiro uma foto tua? Seria tua felicidade ou, mera e lindamente, teu sorriso?

Uma vez te disse que te amo como um fotógrafo ama o outono, mas não é disso que quero falar. É das coisas, sabe, às vezes eu queria só falar das coisas, e do que há por trás das coisas.

Minha cidade respira história, e pra quem vê história ao redor, precisa aprender a conviver com o abstrato, com o representativo.

Uma igreja não é só uma igreja, é um monumento construído há séculos, pelas mãos de escravos tratados como indigentes, igreja essa que depois de pronta serviria para celebrar como Jesus pediu para que tratássemos o próximo como se a nós mesmos. Você percebe a ironia disso tudo?

Você percebe as pequenas ironias do mundo?

Divago, você sabe, mas é porque justamente quero falar sobre o fugidio. Sobre o que a minha câmera não captura quando busca, faminta, esse espectro da cidade. Essas contradições.

Eu tiro uma foto do cimento, árvores, pores do sol, ou teu cabelo disposto sobre a cama enquanto dormes - mas não consigo capturar o que de fato representa nos dias de hoje a opressão do cinza cimento, a solidão de uma árvore, a inexorável passagem do tempo expressa num por do sol, e muito menos aquela felicidade tranquila de sentir o teu cabelo e com ele dormir logo depois de você.

O abstrato está em tudo, define tudo e possibilita tudo, e ainda assim alguém pode passar uma vida toda satisfatoriamente vivida sem sequer notar que esse abstrato existe. Isso é tão desolador. Saber que Drummond tocou a máquina do mundo, que GH comeu a gosma da barata, e isso pra muitos representa tudo, e pra muitos não representa nada.

Você já sabe do que estou falando? Tudo bem se não souber, só me ouça um pouco mais, às vezes eu divago sobre o maravilhoso nada. Abstratamente, tudo.

É que até a mais audaciosa filosofia não tem sopro sequer para matar um dente-de-leão.

É que até os textos de Rilke ou Robinsbawn constroem menos casas que um marceneiro ou pedreiro. E eu estou cansado de tentar explicar isso, de tentar fotografar o abstrato pra te dar essa foto e dizer "Olha, é disso que eu falo, é por isso que eu escrevo."

Se eu não te amasse, te odiaria, por não ser capaz de ver assim as coisas. Mas ao mesmo tempo eu não te culpo, você é o que eu gostaria de ser, você também representa algo que talvez ninguém veja, mas eu vejo. Você é o pragmatismo, é o "eu quero, eu posso, eu faço" dos livros de auto-ajuda, você será rica um dia.

Eu estou mais pra barata de Kafka (que também não tinha ilustrações, a barata também era abstrata, você leu esse livro quando eu te dei?), eu estou mais pra mais pra uma vida curta e intensa. Voce diz que é loucura, mas do meu lado do espelho, a louca é você.

Tudo bem. Eu me calo. É tudo muito difícil de por em palavras mesmo, e quando voce estiver cansada de me ouvir, pode parar de prestar atenção nas coisas que eu digo, pode mirar o horizonte e se desligar de mim. Teu concreto nunca vai se misturar ao meu abstrato, e então eu te peço que se lembre que mesmo sem ganhar um tostão, que mesmo gastando anos e centenas de páginas falando sobre coisas que, "pra sermos sinceros, nem existem", como voce diz, se lembre apenas que eu te amo como um fotógrafo ama o outono.

Seja lá o que isso queira dizer aos seus ouvidos pragmáticos.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 28/04/2016
Código do texto: T5618624
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