Dia de Índio
Houve um tempo que todo dia era dia de Índio. Isso numa época antes do desastroso encontro entre Eles e nós. Eles nos deixaram um legado de maldades. Eles chegaram e nos condenaram à morte por sífilis, gonorreia, e gripe. Eles chegaram e nos violentaram. Nações inteiras foram dizimadas impiedosamente porque nós falávamos diferente, diferente também era a cor de nossos olhos e de nossa pele. Nossa forma de praticar a religiosidade e a fé não lhes era peculiar. E em nome do seu deus eles nos infligiram o julgo da escravidão. Mas nós resistimos e eles estupraram nossas mulheres, exterminaram nossos filhos no ventre de suas mães, julgaram-nos, pois, selvagens... Fomos condenados, nos assassinaram!
Eles destruíram nossos sonhos não quando nos caçaram, nos escravizaram e nos abateram como feras raivosas, não. Eles nos mataram quando nos negaram o direito à liberdade de expressão. Eles nos roubaram o sonho quando nos impuseram seus costumes, suas crenças, sua língua. Eles nos violentaram quando arrancaram de nós nossa cultura! Aos que, miseravelmente foram condenados à vida, trocaram-lhes os nomes, e os submeteram a um doloroso processo de civilidade. Pois éramos selvagens. Então eles, representantes do povo branco civilizado, que não tolera índios e negros preguiçosos e rebeldes nos exterminaram.
Seus instrumentos para o massacre que condenou centenas de milhares de povos indígenas e africanos ficaram entronizados nas páginas dos livros da História Oficial como heróis: descobridores, desbravadores, bandeirantes! Seus nomes foram dados a ruas, praças, avenidas, bairros, rodovias e até cidades. Qual seu grande feito? Chacinas incontáveis! Estupros incontáveis! Era a gente branca purificando o mundo de nossa maligna influência, pois éramos selvagens. Precisávamos de nos converter. Naqueles dias, todo dia era dia de índio! Todo dia era dia de consciência negra!
Resistimos. Assim como nossos irmãos africanos das mais diversas etnias. Resistimos a tudo isso, nos fundimos e singramos nas vagas da História frustrando as expectativas do opressor. E aqui estamos fazendo aquilo que de melhor sabemos fazer: RESISTIR! Não sem sangrar, não sem tombar nesta luta desigual. Eles têm armas poderosas e nenhum receio de usá-las, pois nós somos selvagens.
Nossos pais, mães, irmãos e irmãs foram um incômodo para Eles quando se recusaram saquear Nosso Chão enviando nossos recursos para a coroa portuguesa, a fim de sustentar sua sandice imperialista e os rotularam preguiçosos porque se negaram trabalhar enquanto o branco civilizado ociosamente assistia ao saque infernal do balaústre da casa-grande.
Quanto a nós outros, nos tornamos um incômodo para os filhos e netos d’Eles – dos saqueadores, dos imperialistas, estupradores e assassinos – quando cometemos o terrível crime de invadir suas escolas, suas universidades e ousamos cursar medicina, direito, engenharia, quando invadimos seus teatros e cinemas, seus shoppings, suas vagas no estacionamento, seus aeroportos e cometemos a desvairada ousadia de viajar para o exterior. E fazemos não mais em seus navios negreiros. Que selvageria a nossa.
Seu ódio se justifica ainda no fato de que saímos da lama, do gueto, mas muito mais porque comemos e temos dignidade! Porque nossos filhos e filhas não têm o horizonte limitado à cozinha e ao fogão da casa-grande. Muito mais porque nossos filhos olham-lhes nos olhos, falam francês e dançam ballet, porque a favela tem voz e cérebro e os tem usado. Porque não aceitamos – nunca aceitamos! – jamais aceitaremos a senzala de novo, o chicote de novo, a subserviência de novo.
E agora falamos de Física Quântica e de Política. E por causa dessa selvageria os netos e as netas da senzala e da aldeia cometem a loucura de conceberem-se engenheiros e engenheiras, presidentes e presidentas. Só falta agora um negro, índio, pobre favelado, operário ou operária eleger-se presidente da nação. Mais um(a)? Isso seria mesmo o ápice da selvageria. E, porque somos selvagens, lutaremos por isso!
Eles se esquecem que o servilismo nos foi imposto não nasceu conosco. Por tanto não faz parte da nossa gene. Somos espíritos livres! Foi em nome desta tal liberdade que nossos pais, mães, irmãos e irmãs – negros e índios – sangraram. Não abriremos mão dela e por isso somos selvagens.
E só, e tão somente, porque somos selvagens resistimos a tantos anos de imperialismo. Isso nos deu resiliência, nos fez “antes de tudo um [povo] forte”, sensíveis aos reveses da história e da política. Somos especialistas em crise: escravidão e ditadura militar, anos de governos impopulares. Golpes antigos e recentes nos ensinaram lidar com a censura, com a tortura e com a exogenia que os loucos imperialistas importam de seus vultos torturadores e regimes autoritaristas. Eles temem isso também!
Quem abriu a porta e entrou agora nessa nau que é Minha Terra, que me foi roubada de mim, pode pensar que ela está louca, confusa e contraditória, posto que por aqui “o certo é errado e o errado é certo”. O ladrão julga o inocente, o inocente é réu no tribunal do criminoso. Mas sempre foi assim. Esse é o estratagema que Eles sempre usaram: transformar criminosos em heróis e os que resistem às suas barbáries em criminosos.
Contrariando aos imperialistas modernos, nós ainda resistimos. Menos incautos, contudo. Menos influenciáveis, mais cultos, mais bem formados e muito, muito mais inconformados. Mais cônscios de nossos direitos e ainda mais dispostos a outras selvagerias para garanti-los.
By Jackson Cruz dos Santos