Entre o céu e a terra

No meu sonho eu caminho para a luz. Eu sinto paz e estou velho. Meus ralos cabelos brancos permitem uma leve brisa acariciar minha cabeça. Eu me vejo em um tipo de pijama todo azul, descalço. A língua parece grande demais para a minha boca e eu sinto um cheiro de terra quente molhada pela chuva. E, acima de tudo, me sinto feliz por finalmente ter alcançado a linha de chegada. O fim de todo mortal. No entanto, quanto mais eu ando em direção à luz, mais ela parece se distanciar de mim. Eu começo a ofegar e ficar muito, muito cansado. De repente eu sinto a força das minhas pernas me abandonarem e eu desabo no chão como uma criança que ainda está aprendendo a andar. Eu olho para as minhas mãos e as vejo jovens novamente, sinto a pele do meu rosto se esticando, repuxando, e eu começo a gritar em um intenso fluxo de energia e vitalidade repentino que arrebata meu corpo, descarrega adrenalina no meu sistema nervoso e acelera meu coração que parece querer arrebentar o peito. Então uma risada desafinada ecoa no vazio e numa voz escarnecedora e assustadora diz:

- Sua hora ainda não chegou meu amigo. E nunca vai chegar!

E a luz aos poucos se apaga. Eu mergulho na escuridão, mas não antes de me ver um bebê gigante, com a gengiva brilhando e chorando desesperado.

Era um senhor de terno claro, um chapéu na cabeça e olhos tão profundos que parecia possível enfiar os braços neles. Eu sentei ao seu lado, simplesmente sentindo que era o que eu devia fazer.

- Achei que viria mais cedo amigo. – Iniciou o velho.

- Eu não te conheço.

- É claro que não me conhece. Mas eu te conheço muito bem. E sei o que você quer.

- Nem mesmo eu sei bem o que quero - respondi olhando para o chão.

- Você nunca foi um homem de fé amigo. Porém, sempre buscou o conhecimento - continuou em uma voz calma. - Veja bem, existem dois caminhos distintos para o homem. O caminho da fé, e o caminho do conhecimento. Um renega ao outro, porque a fé exige fechar seus olhos aos fatos, agir e pensar cegamente sem nenhum propósito a não ser sentir a fé. Os que alegam fé através de uma religião buscando redenção, um lugar no paraíso ou algum bem material, não têm fé. Apenas buscam uma recompensa através de bajulação. ELE é um tanto vaidoso, mas não é propenso a bajulações.

- ELE quem? –perguntei já imaginando a resposta.

- Deus oras, quem mais?

Naquele momento o velho com traços de bondade sentado ao meu lado abriu um sorriso que não mostrava nenhum dente. Sua gengiva nua, no entanto, não atrapalhava sua dicção absolutamente. Ele falava claramente.

- É um velho amigo,- continuou - mas às vezes entramos em alguma picuinhas, se me entende.

- Não, não entendo. Quem afinal é você?

- Eu lhe direi, se me ouvir. Como eu dizia, a fé é cega. Para chegar a ELE, essa fé é necessária porque NELE não existe lógica. Não adianta qualquer tentativa de entendê-lo, suas origens ou suas razões.

- Isso me parece um tanto perturbador – disse já totalmente envolvido em seu discurso.

- Para você meu amigo, para você. Porque você buscou o conhecimento, o esclarecimento através das leis dos homens. Sua mente não aceita o que não tem lógica, por isso renega à fé. E por esse caminho pode-se chegar a mim.

- Espera um pouco, – eu o interrompi, compreendendo onde ele queria chegar – você está querendo me dizer que é o... Diabo?

- Se é assim que me conhece, é assim que pode me chamar.

- Olha, eu já conheci muita gente maluca e por mais eloqüente que você me pareça, concorde que é meio difícil de acreditar.

Foi aí que eu o vi. Que eu o vi de verdade. Ele deu aquele sorriso nu novamente e olhou direto nos meus olhos. O que eu senti naquele momento é inexplicável. Medo, frio, euforia, um tremor nos joelhos. Eu vi a face da angústia e me senti atraído por ela. Você não acredita no Diabo até olhar diretamente nos seus olhos e foi o que aconteceu.

- Meu amigo, – ele começou com uma voz agora perceptivelmente mais grossa – Deus existe. E a lógica nos diz que toda ação provoca uma reação. Para a luz existir é necessário a escuridão. Para o sentir calor é preciso sentir o frio. Para a bondade se manifestar é preciso ter consciência da maldade. Para deus existir, eu tive que surgir. Eu estive ao lado dele na criação e percebi que tudo tinha sua reação. Menos ELE. ELE é parte da natureza, ele precisa de um oposto para poder existir, compreende?

- Sim – eu disse com a boca aberta. Era incrível como agora era tão claro.

- ELE é a manifestação da fé. Eu sou a manifestação da falta de fé. O conhecimento pode corromper a alma de um homem meu amigo. Você é uma pessoa letrada, conhece Fausto e Dorian Gray. Não são estórias que surgem do nada.

- Quer dizer que você é o resultado da minha busca? Toda a incerteza, o sentimento de que falta compreender alguma coisa, algo essencial que me fugia, um desejo que eu não sabia o que era. É você?

Essa pergunta saiu da minha boca ao mesmo tempo em que entrava em mim uma enxurrada de respostas. E de perguntas. Eu finalmente havia chegado ao lugar que buscara por tanto tempo, mas que não sabia exatamente o que era e muito menos sabia como chegara lá.

- Mas – continuei – se o Diabo existe, e está sentado ao meu lado falando que Deus existe, então o conhecimento que eu adquiri, a racionalidade que me domina, é um caminho de retorno que leva ao mesmo lugar que a fé!?

- Paradoxo maluco não? No final das contas, tudo acaba em Deus. Ou em mim.

Rafael Brandão Moretti
Enviado por Rafael Brandão Moretti em 25/04/2016
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