O telefone tocou e consultei o relógio para conferir as horas. Havia me perdido em meio às minhas anotações e ela ia adiantada naquela noite quente de verão. Não fiz um esforço imediato para levantar e atender aquela chamada, afinal, não se liga tarde da noite a não ser em casos extremos. Quando essa ideia perpassou minha cabeça, acelerei o passo, haja vista que tenho entes queridos e passivos de morte – nestas horas só pensamos bobeiras.
Do outro lado da linha uma voz que não soava estranha. O sujeito articulou aquele joguinho odioso de deixar no ar sua identidade para que o outro adivinhasse. Se soubesse o quanto gosto desta trama, nunca arriscaria tal façanha. Digo, aliás, o porquê que não me apetece essa brincadeira. Sofro de memória. Sim, isso mesmo. Sofro de memória na plenitude dos meus 37 anos. Já imaginou quando eu estiver com 70? Primeiramente gostaria de saber se chegarei lá! Se sim, terei inúmeras dificuldades e já estou me preparando para lidar com elas.
Às vezes tento buscar o motivo latente desse bloqueio com algumas informações. Como não encontro nenhuma resposta satisfatória, afinal, meu inconsciente adora bloquear tais significantes, jogo a culpa no meu tempo de adolescência. Decorei inúmeros textos para o teatro. Eu adorava aquele jogo de ser quem eu não era. Não perdia tempo em gravar páginas e mais páginas na minha memória de personagens que eu interpretava com exímia convicção. O tempo passou. Cansei desse jogo e ao abrir mão da técnica de recordar textos, perdi a referência, em alguns momentos, de quem são os outros que se relacionam comigo. Seria isso perigoso? Confesso que não havia me indagado sobre a questão. Deixemos para lá, pois, isso será matéria de outra crônica.
Alguns segundos passaram desde que eu atendi a chamada e tentava decifrar a voz que do outro lado, insistia em não revelar sua identidade. Entrei no jogo e disse: “Desisto! Você venceu!”. Uma gargalhada me ensurdeceu. Continuava buscando nos labirintos da minha memória esse som tão familiar, mas ao mesmo tempo, tão distante. Por ironia do destino, um flash com o vulto do sujeito clareou minha mente. Som e imagem colaram de tal modo que pude sentir a presença na ausência, daquele que tinha me tirado do sério por alguns minutos.
Pe. Sidnei estava do outro lado da linha, distante alguns milhares de quilômetros. Falava direto de Roma e não deu-se conta do fuso-horário. Ao tentar remediar a situação, esqueci toda a raiva que havia passado para mergulhar numa conversa que havia tempos, eu não tinha.
Pe. Sidnei foi um companheiro do tempo de estudos na Cidade Eterna. É daqueles sujeitos raros que a vida reserva uma única vez. Ficamos amigos. Trocamos muitas ideias sobre os percalços da existência, até que o destino nos separou. Eu havia cumprido o meu tempo de estudos. Ele seguiria uma jornada mais longa e difícil. Seu projeto de doutorado estava em pleno andamento e alguns anos de dedicação e de entrega aos livros lhe esperavam pela frente. Distanciamos no tempo e no espaço, mas não esquecemos um do outro.
Vez ou outra uma mensagem chegava no celular para minha surpresa. Em junho de 2013, bati na porta do seu quarto – um amplo apartamento no terceiro andar do Colégio Pio Brasileiro em Roma. Quando ele abriu, tomado de espanto, nos tornamos dois moleques num abraço saudoso e banhado de lágrimas. Tomamos um cappuccino naquela tarde e colocamos a conversa em dia. No Natal de 2014 foi a sua vez de me surpreender com uma chamada telefônica. Vendo aquele número estranho no celular não excitei em responder. Do outro lado era ele.
Perdemos o contato no ano passado. A correria da vida aqui e com certeza, a vida dele lá, não nos permitiu nenhuma troca de mensagem, nem mesmo um alô através dos inúmeros meios de comunicação. São essas distâncias proporcionadas pela correria do dia-a-dia que afastam as pessoas que amamos. Damos valor excessivo a essas atividades. Gastamos energia em demasia para dar conta de muito, mesmo sabendo que no fundo, precisamos de tão pouco. A vida é mesmo assim – vamos perdendo-a na tentativa de ganha-la. Pobres mortais somos nós... vivemos na ilusão e só nos damos conta na hora da morte.
Enfim, sua imagem amiga me veio à mente. Partilhei, então, que parecia coisa do destino. Naquela manhã, recolocando alguns livros no lugar, encontrei minha dissertação e, imediatamente, recordei-me dele. Indagações haviam passado pela minha cabeça – tais como: “como ele está? Será que já terminou a tese? O que anda fazendo na cidade eterna? etc”. Ouvindo atentamente minha história ele esperou que eu terminasse e se pôs a responder questão por questão. Falou-me dos tempos difíceis que tinha enfrentado; a proporção que a tese havia tomado e seus empecilhos didáticos e acadêmicos para concluir. Relatou-me suas andanças pelo velho continente – onde juro ter sentido uma enorme inveja. E concluiu.
“Ironia da vida ou destino meu amigo, recordei-me de você também. Prometi, durante nossas partilhas da vida que jamais lhe deixaria de fora dos meus projetos. Esta ligação, tarde da noite é para lhe informar: defenderei amanhã minha tese e sei que você, aqui, não poderá estar, mas sei que mesmo distante, sua oração não há de faltar”. Respondi com os olhos marejados: “Não foi à toa que fiz espiritualidade meu futuro doutor – dará tudo certo”.
Escutei um bip e um silêncio. Não retornamos a chamada. Ela tinha cumprido sua função – recobrar memórias que por grata ironia do destino, nunca serão esquecidas.