Decomposição
Deitado em esplêndida cama mortuária, sinto o cheiro das flores que, graciosamente, tomaram o caminho de minhas ventas, ricochetearem no saco vazio e lembraram-me a ausência virginal de vida. A tia velha, ainda usa perfumes baratos, que pugna o sistema respiratório de qualquer morto.
Muitos estão ao meu redor, mas nem beber uma dose eu posso, ou acender aquele cigarro e ter uma boa conversa de fim de tarde. O que eles querem aqui?
Ver-me morto, ter a certeza que morri? Estou aqui, frígido e os fluvius sanguíneos nem perpassam mais meu corpo, casca e somente isso, invólucro oco.
Se ao menos, esses seres soubem-se o que eu engendro sobre eles. Tio Noel, homem bondoso e alcoólatra, casou com Lucinda, cozinheira dos melhores quitutes, além de aguentar o mau cheiro de cana, o canavial fermentado em seus lábios. Ela tem sempre de estar bonita, apesar da invencível feiura, para o libido do bêbado, que por, ainda, ter uma vida sexual caba-se. Pobre mulher pecadora, comeu a maçã, destruiu Tróia, boas mulheres que passam e cozinham, mas não pensam.
Quantos eufemismos usei nas reuniões familiares para amenizar minha revolta com aquele círculo, quantas verdades ocultadas em favor do bom relacionamento. E, agora, que poderia vomitar toda fúria, não posso falar. Desejo que meu corpo exale odores pútridos, essa será minha última mensagem.
Tia louca, que na loucura encontrou sua maior lucidez, a luz que iluminou a caverna escura. Revoltou-se com os postulados patriarcais e lhe legaram o hospício. A moral familiar era demais para uma senhora solteira e sem descendentes.
Ariadna, mulher, idade media e apaixonada por quasimodo, não conheceu Teseu e Baco, e casou-se com o Minotauro. Mulher traída e jogada ao chão, soube de inúmeras amantes, mas nunca ergueu-se contra seu amor disforme. Não sei se ama os tostões ou se a feiura da pessoa amada fantasiou-se de beleza nos olhos de quem ama. Servia-lhe comida na cama, enquanto o porco dormia, lavava suas roupas sujas de lavagem e sentia o perfume barato de mulheres mais baratas, e de todos sentimentos aglutinados amava-o.A vi metamorfosear-se em asno e buscar alimento em pasto seco. O que o pejo aconselha, o amor impugna.
Os montes pétreos de minha família estão ligados por correntes do sofrimento e da ignorância. Trabalhador que sonha como patrão, homens de Deus, que submetem toda sociedade ao seu árbitro. É melhor estar morto, livrando-me das amarras do devir.
Hoje, eu estou livre, não preciso ser esse ente metafórico, que guarda todo o lamaçal da instituição familiar. Não sou como eles, fugi do cruel destino. Fui nada, mas, agora, sou tudo. Tornei-me universo, flutuante sobre a belicosa família. Pés e mente livres, o eterno não tornou-se a afirmação incontestável, não ser como outrora, nascerei do pó e com ele me banharei.
Livros nunca tiveram em casa, poesia rechaçaram do seus seios, compraram mercadorias inúteis e mais nada. Gozaram do quiche e o penturam em suas paredes. Dor tremenda em ver-me cercado de tolices de autores desconhecidos.
Deitado percebo como és feio o mundo na horizontal, e como são impetulantes os homens cobiçando as mulheres em honra funerária. A nau parti sem porto pré-determinado, não busca ancorar-se, quer ser livre, ser nada, tornar-se escuridão, abandonar q mente dos homens. Deseja o não ser, espírito navengante.
Abandonou o sofrimento da vida e, agora, é apenas um corpo, que inicia seu processo de decomposição.