A complexa relação com uma aranha (Fernando Paz)

Todo dia, entrava no banheiro e lá estava ela: uma aranha. Percebíamos, reciprocamente, um ao outro. Bastava abrir a porta e logo ela tecia sua teia e desaparecia por um pequeno orifício sob o parapeito da janela.

No inicio, não dei importância. "Foi apenas uma coincidência, em poucos dias, ela sumirá dali" - pensei.

Mas após uma semana, repetíamos nosso ritual: sentíamos a presença um do outro.. Eu tentava, inutilmente, ignorá-la e ela,

rapidamente, tentava, instintivamente, se ocultar. No entanto, a repetição, em algum momento, vira uma complicação. Comecei a achar que deveria fazer alguma coisa a respeito, mas sem coragem de investir contra aquela frágil vida.

Tentei usar religiões para justificar minha apatia. "Estarei impedindo a evolução espiritual de um ser vivo", ou na pior das

hipóteses: "eliminando algum antepassado, que usou àquela reencarnação para progredir" (Achava pouco provável, mas precisava de fortes argumentos). Cheguei a pensar, que como "aranhas existenciais", Deus também deve ficar tentado a nos remover de nossos pequenos recônditos.

Pensei, filosoficamente, sobre "A metamorfose" de Kafka e toda a estranheza, que eu poderia causar à alguém, se fosse aquela aranha.

Ou até, biologicamente, nos benefícios de se ter uma aranha, como a eliminação de mosquitos e outros insetos menores, como

traças.

Pensei na seleção natural darwiniana, afinal eu era um mamífero e racional, estaria um pouco acima de sua escala, para determinar qual deveria ser seu destino. Até mesmo Newton, veio em meu apoio, com sua teoria de que "dois corpos não podem coexistir no mesmo espaço".

Artisticamente, comparei nossas semelhanças, eu com minhas mandalas e ela com suas teias. Ambas radiais e detalhadas...

Por fim, assumi a postura mais covarde, avisei a faxineira: "Por favor, quando limpar o banheiro, poderia remover uma aranha, que está ali?"

Assim, ela faria o trabalho sujo de removê-la e dividiríamos a "culpa". Mas, certamente, ela deve ter eliminado outra aranha, porque ela continuava ali, quando entrei à noite.

Retomamos nosso ritual, que neste momento, já havia se tornado uma guerra fria e hostil. Fazia alguns barulhos para espantá-la e ela por sua vez, perdeu o medo de mim e se impunha no ambiente.

Enfim, assumi minha irracionalidade e anulando qualquer pensamento benevolente, em um golpe único impiedoso, eliminei-a. Hoje, abro a porta e sinto um certo vazio ao olhar aquele local. Por algumas semanas, dividimos o mesmo espaço.

Quando percebi, ela havia reaparecido, desta vez, ocupando minhas memórias, páginas, minhas linhas...Me obrigando, no fim, a tecer estas palavras.

Fernando Paz
Enviado por Fernando Paz em 12/04/2016
Código do texto: T5603181
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