Ramon pula fora

Ramon desistiu, pediu demissão. A pressão foi demais, não aguentou. Como peça de um sistema, Ramon tinha que funcionar conforme o manual da máquina; só que não funcionava. Não se via naquele manual, não era daquele jeito, mas tinha que se encaixar. A regra era clara: encaixe-se, seja o que o manual diz que você tem que ser, esqueça talentos e habilidades que não nos servem e desenvolva os que necessitamos. É simples.

O chefe de Ramon seguia rigorosamente o manual. Estava atento a todos os detalhes do processo, a todos os gráficos e tabelas que lhe eram enviados de hora em hora com novos dados (nos quais Ramon estava sempre aquém de alguma coisa que até hoje ele não sabe dizer direito o que é). O fato é que Ramon não servia para aquilo e tinha que sair. Era peça estragada, sem conserto, tinha que dar lugar a uma outra, que funcionasse direito, que tivesse melhor encaixe e atendesse rigorosamente ao que o manual estabelecia.

Por isso a pressão para que ele pulasse fora. Porque o manual diz: é sempre melhor que a peça estragada pule fora por conta própria. Tirá-la à força, só em último caso. E no capítulo Pressão Psicológica (que só existe na edição dos chefes) está escrito: trate a peça defeituosa com indiferença e desprezo em relação a qualquer coisa positiva que ela fizer. Não se interesse pelo que ela tem de bom, foque no que ela tem de ruim, no que ela deixou de produzir, nos problemas que ela causou. Seja meticuloso. Tenha um olhar amplo para o positivo e detalhista para o negativo. Mesmo se o que a peça produzir lhe parecer bom, não diga; procure defeitos, aponte erros, ressalte-os, exagere-os, de forma que a peça se sinta mal, desmotivada. A peça não está bem encaixada, ela sabe disso, e quase sempre pensa em abandonar o sistema, porque está infeliz. Aproveite-se disso. Compare-a com outras peças. Elogie as outras na frente dela, para que ela se sinta menor, inferior. E, sobretudo, aponte os erros, encontre sempre um porém nas coisas que ela te apresentar, acabe com o seu entusiasmo, com o pouco de motivação que ela ainda tiver. Interrompa-a na frente das outras, conteste-a, humilhe-a discretamente, com cuidado, mas humilhe-a; ela tem que se sentir pequena e fraca. Assim ela pula fora, não tem jeito. Ela não aguenta.

Ramon não aguentou. Foi melhor assim. Perdeu o Fundo de Garantia, mas tem algumas economias guardadas, o que garantirá por um tempo o sustento da sua família. Está agora pensando no que fazer. Está livre, leve como uma pluma, mas sabe que agiu precipitadamente. Os livros que lera sobre mudar de vida etc. não recomendam pedir demissão sem que se tenha outra coisa em vista. É muito arriscado. Ramon arriscou. Mas não se arrepende. Está feliz.

'Perdi o medo de mim. Adeus'. (Adélia Prado)

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 12/04/2016
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