CAVALOS MARINHOS DE SÃO VICENTE: CONFISSÃO DE UM PREDADOR
OS CAVALOS MARINHOS DE SÃO VICENTE: CONFISSÃO DE UM PREDADOR
A orla marítima entre o monumento dos 400 anos de fundação de São Vicente e a Ponte Pensil hoje se encontra tomada por pescadores com varas e linhas. Próximo ao Monumento existe uma pequena baía e no meio desta há uma pedra que aflora à superfície do mar, que chamávamos de Pedrinha. Era ali que o Sr. Nogueira e o pai do Jiro Hashizume pescavam miraguaias enormes, com varas de carretilha hoje bem primitivas e de difícil manuseio (a carretilha em sí era feita de arame de cobre, acoplada em uma vara de bambú e ao longo desta várias argolas guiavam a linha até a extremidade). Essas varas eram fabricadas pelo Sr. Hashizume e vendidas no bazar Boa Sorte, de sua propriedade. O Sr. Nogueira era pai de uma linda moça, que viria ser política, a Sandra Nogueira. Êles chegavam ao final da tarde, quando estava anoitecendo, com a vara e embornais com iscas e um lanche. Atravessavam a nado os 10 metros da margem até a Pedrinha com suas tralhas acima d água, se instalavam e, já de noite, lançavam sua linha o mais longe possível em direção ao centro da baía de São Vicente. Passavam a noite pescando e, quase sempre voltavam para casa com peixes e miraguaias de grande porte.
Nessa época predominava a caça submarina, praticada pelo pessoal mais moço. Era um esporte relativamente novo, emocionante, um desafio para a perícia e o preparo pulmonar do mergulhador. Havia arpões de todo tipo de impulsão: mola, de borracha, feitos e m casa ou industrializados. O sonho de consumo eram as armas a gás CO2, que não davam quase nenhuma chance para o peixe devido a sua potência e precisão de tiro. Surgiram verdadeiros ases desse esporte que iniciaram suas carreiras em São Vicente. Eliseu, que depois seria arquiteto; David chegou a ser secretário de obras da cidade; meu grande amigo Barreto; Bayard, hoje empresário bem sucedido; meu irmão Henrique; e inúmeros outros.
A minha turma era constituída de uns moleques mais novos uns quatro ou cinco anos desses mergulhadores. Nessa fase da vida é uma diferença enorme. Para nós esses caras eram ídolos. Começamos a nos interessar por mergulho, muito mais pelo fascínio que o mar exercia do que por pegar grandes peixes. Realmente, mergulhar e conviver temporariamente no meio subaquático é uma experiência fantástica. É um paraíso de tranqülidade, um mundo diferente, a pessoa se sente leve, pois a gravidade diminui e nos sentimos flutuando. Eu ficava esperando algum amigo sair da água para descansar e pedia a máscara e os pés de pato emprestados. Caía na água e curtia aqueles momentos com muita intensidade. Com o tempo, consegui que meu irmão emprestasse o equipamento dele e, mais tarde, adquiri meu próprio material de mergulho. Sempre em turma, íamos para o mar e nos revezávamos mergulhando. Até descobrirmos que a região era um habitat natural de cavalos marinhos. Cavalos marinhos são amuletos de sorte, diziam.
Na Praça da Biquinha, havia inúmeros carrinhos de “Lembrança de São Vicente”, onde se vendiam peças artesanais com conchas envernizadas. Como havia alguns desses souvenires com cavalos marinhos, começamos a apanhar cavalos marinhos para vender aos donos dos carrinhos. E foi um sucesso. Pegar cavalo marinho para vender passou a ser a principal atividade de nossa turma. Cada animalzinho era vendido ao equivalente uns cinco reais. Em média, eram uns quarenta cavalos marinhos vendidos por dia. Essa importância era dividida por quatro ou cinco moleques, o que é uma boa grana para quem tem 14 ou 15 anos. Resultado: praticamente eliminamos com a população de cavalos marinhos de São Vicente, o que me dá até hoje dor na consciência. Uns dois anos antes de meu pai morrer ocorreu um fato emocionante: em um churrasco da família, meu pai saca da carteira e tira dela um cavalo marinho seco. Perguntei onde ele havia obtido e a reposta me fez tremer: “– Você me deu quando tinha quatorze anos, para dar sorte. Desde então trago na carteira.” Só fazia uns 50 anos. Fui às lágrimas.
Paulo Miorim
10/04/2016