Das coisas à memória


         Logo nos primeiros anos da pré-adolescência, comecei  a escutar e a tentar compreender pregações e admoestações para "não amar coisas materiais". Consciente de que a matéria do corpo constitui também minha inteireza, observava também que bens materiais contradiziam um ou outro que apregoava  pobreza radical ou exageradamente  sobre-estimava a "riqueza espiritual" acima de qualquer "riqueza material". Também logo percebi o pouco eco desse radicalismo num mundo amante da matéria e das coisas , especialmente, as que simbolizavam a riqueza e suas luxúrias. Como entrar nesse oceano sem se molhar? Como sair o peixe d'água doce, com pouco sal no corpo,  para sobreviver no oceano de água salgada?
          Foi quando, no silêncio, contra-ecoou uma voz admoestando ao equilíbrio: O "Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus" dos evangelhos; o "virtus in medio" de Aristóteles ou a "ataraxia" dos epicuristas. Nesse encontro de águas, somente o equilíbrio do sal ajudará o peixe d'água doce a adaptar-se ao mar, e o do mar, ao rio... Todavia, o mandamento de "amar a Deus acima de todas as coisas" não repercute em quem não nasceu para ser, mas para ter,  acontecendo-lhe o inconcebível: Esses amam as coisas acima de Deus e de si mesmos...  
          Há quem não ame as coisas , nem as jogue ao lixo,  mas se apegue a elas. Esse apego  cresce na velhice, quando tais coisas fazem recordar o passado, parte maior da vida; despertam lembranças e levam-nos à memória, simbolizando vividas circunstâncias. Nesse sentido,  como o peixe precisa da água para sobreviver, a memória coletiva necessita do patrimônio histórico da cidade, de coisas que devem ser amadas por terem sido espaço do tempo que se foi ou lugar da realização da nossa história.