No meu tempo

No meu tempo

Eu gostaria de falar com você. Posso?

Queria lhe pedir desculpas, não sei exatamente o que eu quero de você...

Queria aprender sobre seu rosto, seu dia, sua noite, o seu silêncio e ouvir as palavras escondidas na sua boca...

Eu gostaria de falar com você...

Perguntar a você sobre as árvores, sobre as plantas, sobre a chuva... Perguntar sobre as flores. Será que você gostou de algum girassol? No seu tempo existia girassóis?

Eu queria falar com você, consigo, tu, todos os pronomes que saltam do meu peito.

Gostaria de dizer sobre as nuvens e dos anjos que habitam as casas derrubadas...

Queria lhe dizer das mãos das crianças que percorrem à noite branca do parque, dos faróis...

Das margaridas e, sobretudo, das raízes invisíveis penetradas na terra do seu corpo.

Queria perguntar sobre você, sobre as músicas arrebentadas nas gargantas e jogadas aos seus ouvidos...

Falar sobre os jardins... Não é engraçado falar de coisas absurdas? Porque você deve saber que os tempos são outros.

Dizer a você que uma lua de vidro percorre as sombras brancas das pontas dos dedos, das unhas afiadas espetando seu rosto e vazando os olhos das pessoas...

Queria poder lhe dizer que o abraço atravessou à tarde e morreu antes da aproximação do corpo.

Se eu começar a chorar, não liga não. Se eu chorar espere que eu acorde a violência do meu peito para tentar voar como uma pomba, num tempo que voar era impossível.

Olha! As pombas brancas também já não existem mais. Morreram...

Queria agora rodar o arco-íris de minha infância que se perdeu para sempre...

Poderia até cometer suicídio de brincadeira para resgatar a vontade de viver...

Olhando agora para você queria lhe oferecer um refrigerante, uma laranja, uma caneca com água, um sanduíche, um sorvete, eu não sei, talvez uma maçã ou mesmo um pedaço de pão.

Quero olhar para você mais uma vez, muito devagar, como se esta vez fosse a última e durasse apenas quatro segundos...

Queria lhe oferecer o sol, mas o sol não é meu. Estaria mentido.

Queria que me dissesse sobre os pássaros, sobre a floresta, o verde, do chão, dos prédios, do amor, do ódio, da ternura...

Quantas coisas quero saber.

Queria adivinhar as paisagens que se escondem dentro dos seus olhos...

Você que sonhou tanto, como eram seus sonhos? Você não quer me responder?

Como você viu os cavalos que percorriam as planícies e todos os outros animais?

Queria conhecer um tantinho de sua sabedoria...

Nesse momento não consigo ouvir sua voz, não vou lhe perguntar mais nada...

Não vou dizer nada. Vou ficar quieto dentro de mim.

Vou apagar as sombras e percorrer sozinho o silêncio das noites...

Olhando agora para você, vejo sua cara de louco, seu cabelo comprido, sua barba ensanguentada, essas chagas...

Escuta cara: ainda existe o beijo por trinta moedas. As coisas por aqui não mudaram muito...

Do livro "Meninas e Meninos Volume II" - 2009 - Editora Topázio - Araras-SP

Sérgio Prado
Enviado por Sérgio Prado em 08/04/2016
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