Tenho quase certeza de que nunca fiz 60 anos. Na verdade ninguém faz 60 anos. 
     Se descontarmos o tempo que perdemos entretidos com coisas pequeninas e que nem deviam contar para a Loteria do que somos, ou para o que fomos, ninguém saberá ao certo quando perfaz 60 anos.
     Eu devo confessar que só me apercebi do redondo número quando um  clube a que pertenço me endereçou uma missiva onde dizia, de forma sutil mas não menos eficaz me dizia "meu menino, já vai longe o tempo da garotice .É tempo  de renovar a carta de motorista". 
     Já vi formas mais sutis de fazer chegar algumas mensagens. Parece um aviso da malha fina da Receita, isto mal comparado.
     Foi nesse momento que fiquei frente a frente com a situação.
     Vacilei. Há sempre ali um momento de frissom. O número, que não sinto, impressiona. É majestático. Redondinho, mas isso também eu estou e não me parece tão impressionante... Incongruências.
     Há sempre assuntos que  desfilam pelas meninges em carrossel. O primeiro que me surgiu foi a próstata. Isso. Algum fato tinha de ser o primeiro. Afastou-se rapidamente. 
     Lembrei-me dos que me faltam, dos que tombaram em serviço, qualquer serviço e sobretudo dos que me tombaram das memórias sem que eu quase tivesse dado por isso.
     Quem ainda não fez 60 anos não perceberá, quem já os fez fará por esquecer. 
     Sim, nos lembramos de nós. Do que já fomos, do que amamos, dos que não conseguimos manter no abraço. É muita memória viva para descrever a intimidade publicamente. 
  Lembrei-me do que falhou, que é quase sempre muito mais marcante do que o nosso relativo sucesso. Sucesso é estar vivo e poder escrever "Nunca fiz 60 anos". 
     Sim, eu sou dos que terá pena de morrer, nunca  escondi, não é bem pena, é medo, mas digo pena porque soa melhor e me assusta menos. 
     Lembrei-me dos mais novos, aqueles que nos fazem sentir mais velhos rapidamente. 
   Lembrei-me da angústia que será desaparecer, não gosto da palavra desaparecer, um dia vou ali e já não volto, mas enquanto aqui estou, aturem-me.
     Nunca fiz 60 anos. Ainda agora completei 59 e já estou, estamos todos, preocupados com o nosso próximo degrau. Quando olho para trás vejo, egoisticamente estou certo, uma história de sobrevivência. 
     Sim,sobrevivência. 
     Não tenhamos medo das palavras. É um milagre estatístico ter pegado hoje no teclado e iniciado um texto de que não gosto particularmente. Estar vivo é em si mesmo um milagre estatístico.
     Lembrei-me primeiro de quem efetivamente não gosto. Dos que me fazem nojo. Não se assustem, não sou um tipo azedo, mas sempre fui assim, já quando menino comia primeiro o que não gostava para depois me poder deliciar com as iguarias favoritas. 
     Continuo a ser assim. mas  como bastante menos ...
     Ficam-me por último aqueles a quem amo. As minhas iguarias favoritas. Aqueles que mesmo longe ou mais distantes não me falham. Os meus portos de abrigo para quem não há alertas de tempestades ou barras fechadas à navegação.
     Tenho a certeza de que não fui perfeito. De que nunca fui perfeito. Mas concedo que partes de mim são ou foram muito boas. 
     Fecho os olhos e me concentro nisso. No bom, em vez do mau, no doce em vez do amargo.
     Fiz o melhor que pude? Talvez não, se houver crédito à preguiça. Talvez sim se pensarmos que tudo o que fiz, tudo o que faço e tudo o que eventualmente farei se deve a todos, chegados ou afastados, família, amigos, e outros que não consigo classificar por falta de tempo e gavetas.
     Mesmo os amigos recentes que disseram "Presente!" quando não tinham necessariamente de o fazer. Agradeço-lhes a companhia na viagem. E se tem sido uma viagem. É caro o preço da passagem, mas nos deixam levar muita bagagem.
     Se estou satisfeito com tudo o que fiz? Não. Desculpem-me, podia ter feito mais, podia .. E menos amargura. Muito menos amargura. Aquela que combato diariamente e que evito que transpareça. Tenho a certeza de que nunca fui ingrato. Tenho a certeza de que muitas vezes avancei eu sem necessitar de compensar fosse o que fosse. Tenho a certeza de que não fui completamente mau. 
     E é, ou foi isso que me permitiu olhar para os lados e ver tanta gente em linhas paralelas, gente que vai noutros carros mas na mesma direção em que sigo. Se eu me finasse hoje, ainda teria chances de ser convocado para o time "Masters"!. Talvez isso me  baste e me aqueça a alma.
     Nunca fiz 60 anos. Na verdade ninguém faz 60 anos. Daqui pra  frente é mais estrada  à vista. Isso,  se não houver novidades, com a próstata.