O TROCADOR
 
Quando entrei na lotação para ir trabalhar, estava nervoso. Não que tivesse saído de casa assim tão irritado, foi mais pela demora do ônibus, embora tivesse motivos mais que justos para tal. O aluguel já tinha vencido, também a água e a luz. Nem mesmo o café da manhã pude beber... não tinha açúcar nem pó, e no bolso apenas alguns trocados para a condução. Em casa, a mulher e as crianças teriam que se virar com as latas vazias. Ainda bem que o arroz e o feijão davam para uns três dias. O gás estava no finzinho. Tudo junto, assim de uma vez e ainda por cima o lotação demorando a passar; se chegar cinco minutos atrasado, perco uma hora e corro o risco de perder o remunerado.
   Assim que a porta do lotação abriu, entrei já disposto a dar uma porrada no trocador, ou extravasar minha impotência no primeiro que me olhasse enviesado. Quando cheguei na roleta, joguei as moedas com força sobre a caixa do trocador e esperei por uma merreca de cinco centavos de troco. Calmamente o trocador me disse que não tinha troco para me voltar. Então explodi:
   - Olha aqui seu ladrãozinho de uma figa, se vire! Quero meu troco e rápido, você está escondendo moedas para colocar no seu cofrinho, seu cachorro!
   Assustado com a minha reação, o trocador abriu a gaveta e falou:
   - Olha aqui, as únicas pratinhas que tenho foram as que o senhor me entregou agora.
  - Não interessa - disse encarando-o - me dê logo o troco e mixa o papo. Estou esperando...
Ainda dei um soco na gaveta. Os demais passageiros ficaram observando com olhares indecifráveis.
 De repente o trocador começou a chorar. As lágrimas saíam silenciosas dos seus olhos. Só então percebi o quanto eu tinha sido cruel, mesquinho. Senti um aperto no peito e saí da roleta em silêncio, me sentindo o pior dos homens.
  O trocador não tinha culpa de nada. Mesmo que estivesse escondendo algumas moedas para salvar o cafezinho, o que não concordo, pois estaria tirando de pessoas tão exploradas quanto ele, era uma coisa, mas chamá-lo de ladrão, vai uma grande distância. Talvez as suas lágrimas exprimissem a sua miséria. Assim como eu saíra nervoso e chateado por não ter bebido o café, o mesmo poderia estar acontecendo com ele. Tanto ele quanto eu, sofríamos os efeitos de uma sociedade injusta e mal organizada, uma sociedade que vive às custas da exploração da maioria do povo. Eu não tinha sido companheiro. Por que chamá-lo de ladrão, quando o verdadeiro corrupto era o seu patrão, ao pagar-lhe um salário miserável?
   Entrei na fábrica e bati o meu cartão pensando:
  "Trabalho todos os dias e, no entanto, me falta o mínimo necessário para sobreviver com dignidade. Ainda por cima agrido um trocador que nada tem a ver com o babado, me irrito com as pessoas que não são as responsáveis pela miséria e exploração, pelo contrário, sofrem como eu os resultados produzidos pela exploração capitalista. Tenho de ter um pouco mais de cuidado. Precisamos nos manter unidos, afinal, estamos no mesmo barco".




Esta crônica foi escrita em 1980 e publicada no jornal O Companheiro e integra do meu livro de bolso Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do autor - 2006 - Esgotado.  Uma característica do gênero é o registro de uma época.  Esta relação usuários/trabalhadores do transporte coletivo passou por transformações.

Tenho à disposição dos leitores e leitoras A Moça do Violoncelo (contos de suspense) e Estrelas. Dois livros em um.  Aos interessados, façam contato. Obrigado.