COLCHA DE RETALHOS
Na época da ditadura , nesse país , os escritores tinham que escrever o que pensavam de várias maneiras para driblar a censura . E para relembrar esses tempos , que não podem mais voltar , passo a fazer o exercício :
Ando por aí - apesar que ando mais em sonhos do que de fato ando - conheci , na capital , um vendedor de colchas de retalhos.
Colchas essas que me chamaram a atenção pela beleza , pelos detalhes e pela história que depois vim a conhecer através do artesão que as confeccionava .
Lindos detalhes , maravilhosos desenhos , deslumbrantes mesmo , que ao olhar já inspiravam saber mais sobre elas.
Contava ele que aprendeu a fazê-las na sua cidade natal , e que também lá eram famosas . Chegou até a ganhar prêmios . Mas sabe que em cidade pequena : muito sucesso ofusca quem manda na cidade , no comércio , e o que lhe restou foi partir para outros lados , então decidiu morar na capital.
Claro , tudo mudou . Não conhecia ninguém , não tinha nenhuma grana , apenas algumas colchas e a vida inteira para tentar sobreviver com aquilo que trouxe de mais valioso : A receita de como fazer as tais colchas de retalhos.
Analisando um pouco a história desse artesão , as colchas se parecem muito com nossas vidas , no final se transformam em colchas . Nossas vidas são pedaços de outras vidas que formam o nosso todo : O NOSSO EU !
Mas caminhemos...
Foi quando , para minha surpresa , ele me fez um convite :
"Tenho uma colcha aqui , que quero contar em detalhes a história dela"
Claro como interessado que sou , aceitei na hora o convite e assim começou a falar : - Essa colcha aqui não vendo , não dou e não me desfaço dela , será ela que cobrirá o meu corpo quando passar daqui para melhor . "
E eu então quis saber os detalhes daquela fala ...
E ele começou a me dizer :
Essa é a minha melhor produção , cada pedaço dela significa uma parte importante da minha vida...
Aqui estão gravados em pedaços de pano algumas das minhas marcas de vida ...
Esse meu jeito de falar com vários sotaques são os pedaços de retalhos distribuídos em azul pela colcha e significam cada pessoa que através das minhas andanças tive contatos próximos , a minha alma os absorveu , assim me transformei um pouco neles , você me entende ? Por isso que quando falo existe em mim um emaranhado de sotaques , mas na verdade não passo de um caipira que deixou para traz o seu passado pela sobrevivência no futuro próximo.
Ahhhh....os retalhos vermelhos , esses tomam um bom espaço na colcha , e são da maior importância na minha vida , pois por motivos dos caminhos sou um comunista , um quiabo comunista , verde por fora ... mas vermelho por dentro ... pelos amores , e pelos horrores porque passam os vermelhos quando os donos da casa grande querem escraviza - lo .E fui escravizado várias vezes , no meu trabalho , nessa selva de pedras e no amor...ahhhhhhhh os meus amores... sempre intensos , sempre como se fossem o último , mas que chegavam e ainda chegam , me levam para o céu , mas que ao fim acabam em infernos astrais intermináveis.
Bom com certeza você me perguntará porque tanto retalho branco nessa colcha ?
Agora é que se você quiser sentar e tomar um café comigo , te darei os detalhes ...
Aceitando o café comecei a escutar o que de fato guardava através da arte em uma colcha de retalhos...
Esses retalhos brancos são a memória das lutas que travei através dos tempos contra mim mesmo , a procura do meu eu que por vários motivos me perdeu de mim . Como dizia o filósofo : " É difícil viver com as pessoas porque calar é muito difícil " (Friedrich Nietzsche)
E assim travei minhas lutas , procurei caminhos , achei descaminhos , aprendi a ler as almas das pessoas para ver se resgatava a minha , lutei para não matar , e para sobreviver comecei a odiar o ser humano como assim me odiasse pelo resto dos meus dias . Mas diante dessas lutas achei uma forma cômoda de viver e assim continuar...
Minha metodologia de vida é a de viver por contratos... contrato social , contratos amorosos , contratos econômicos financeiros , contratos ... E foi assim que tudo caminhou , sem perceber na verdade que o controle dos contratos eram aparentes , o controle desejado...na verdade era o fruto do descontrole do meu eu .
Rousseau afirmava que " A liberdade natural do homem , seu bem-estar e sua segurança seriam preservados através do contrato social ".
Para Rosseau , " O homem nasceria bom , mas a sociedade o corromperia . Da mesma forma , o homem nasceria livre , mas por toda parte se encontraria acorrentado por fatores como sua própria vaidade , fruto de corrupção do coração . O indivíduo se tornaria escravo de suas necessidades e daqueles que o rodeiam , o que em certo sentido refere-se a uma preocupação constante com o mundo das parências , do orgulho , da busca por reconhecimento e status . Mesmo assim , acreditava que seria possível se pensar numa sociedade ideal , tendo assim sua ideologia refletida na concepção da Revolução Francesa ao final do século XVIII .
A questão que se colocava era a seguinte : como preservar a liberdade natural do homem e ao mesmo tempo garantir a segurança e o bem - estar da vida em sociedade? Segundo Rosseau , isso seria possível através de um contrato social , por meio do qual prevaleceria a soberania da sociedade , a soberania política da vontade coletiva .
Rosseau percebeu que a busca pelo bem - estar seria o único móvel das ações humanas e , da mesma , em determinados momentos o interesse comum poderia fazer o indivíduo contar com a assistência de seus semelhantes . Por outro lado , em outros momentos , a concorrência faria com que todos desconfiassem de todos . Dessa forma , nesse contrato social seria preciso definir a questão da igualdade entre todos , do comprometimento entre todos . Se por um lado a vontade individual diria respeito à vontade particular , a vontade do cidadão (daquele que vive em sociedade e tem consciência disso) deveria haver um interesse no bem comum."
E através dessas ideias... fui confeccionando a minha vida , a minha colcha de retalhos...
Á partir daí comecei a regular as minhas angustias e passei , com certeza , todas as barreiras dos preconceitos e daquilo que a sociedade impõe como certo ou errado , fiz o meu contrato com a sociedade e portanto a minha vida particular seria preservada e a vontade coletiva seguida dentro dos padrões de cada sociedade por onde passei . Portanto não seria mais eu , seria a minha vontade respeitada aceita ou não,isso pouco importaria o que vale são os meus contratos assumidos com a humanidade.
Com certeza , atento àquela profundidade das colocações e depois de uma breve análise não me contive e perguntei:
Artesão de colchas de retalho - Quem é você ?
E ele prontamente me respondeu :
"SOU PARA MIM A FRAUDE DE MIM MESMO...
PORÉM PARA O MUNDO SOU UM GRANDE MITO".
XIKO - O LOUCO - abril/2016