João Gato e a Recherche

 

 

A conceituada Gallimard não brincou em serviço. Faz oito anos lançou no mercado a primeira edição de toda a Recherche em apenas um volume, e os admiradores incondicionais de Marcel Proust, que há muito gostariam mesmo de carregá-lo para baixo e para cima, não precisam de mais nada. O meu é reimpressão de julho do ano passado, 2.408 páginas, cento e cinqüenta paus, com um desconto pífio — mas vocês gastariam quase isso em três alentados best-sellers de mau gosto. Para este cronista, que não dispensa sua mochila de dez tostões aonde quer que vá, a idéia da tradicional casa de livros francesa não podia ser mais abençoada. Agora é deitar e rolar.


Salvo por este ou aquele trecho escolhido, não conhecia Marcel no original. No entanto, como todo leitor brasileiro de minha geração, tinha devorado, por volta de 1966, quando mal completara os meus dezoito de idade, os sete ou oito volumes de Em busca do tempo perdido publicados pela Globo de Porto Alegre, em traduções assinadas por grandes nomes da literatura brasileira (Quintana e Drummond, por exemplo, para citar os que me ocorrem neste instante).


Emprestou-me a coleção, livro a livro, um vizinho de prédio pouco mais novo do que eu, vejam só, fisicamente um verdadeiro barão de Charlus da nossa Esquina do Estabaco, em Marechal Hermes, sobretudo quando vestia sua melhor roupa para flâner no Boulevard dos Tamarindos. Nos anos 1960 e 1970, nas noites de domingo o bairro regurgitava de gente nova passeando entre a igreja católica e a estação ferroviária. Sem que ele soubesse, passamos a chamá-lo de João Gato, depois de um sem-número de episódios desagradáveis que o denunciaram como cleptomaníaco.


Era uma época de muita festinha americana nos apartamentos do nosso condomínio, e não havia um que não acusasse, no dia seguinte ao do arrasta-pé, o sumiço de pequenos objetos de valor. Honrados pequeno-burgueses, filhos de honestos funcionários públicos, não tínhamos suspeitos naturais no lugar, sequer o mais improvável indício de um culpado; até que numa dessas pegaram o gaiato enfiando no bolso uma chapinha de Coca-Cola. Não pela chapinha, claro. O lance da chapinha funcionou apenas como um alerta. Flagrado pelo Paudeda, psicólogo de primeira, num gesto em que entravam detalhes tão sutis de encobrimento de algo tão banal, matou-se a charada. Resolvemos ter uma conversa franca com ele, sem animosidade, o cara confessou tudo e devolveu o que pôde.


A essa altura eu já estava lendo o antepenúltimo volume da coleção proustiana (A prisioneira), e não pude deixar de indagar-me se não teria em mãos uma obra roubada. Nos meus dezoito anos, era de fato uma questão crucial. Nem me passou pela cabeça que era um absurdo imaginar um cleptomaníaco saindo furtivamente de uma livraria com um monte de livros nos braços. Abandonaria a leitura depois de ter chegado a momentos tão decisivos da Recherche? Fui ao dicionário em busca de cleptomania, escorei-me firmemente no aspecto psicopatológico sugerido pela palavra compulsão (um rapaz doente, coitado), e tracei os volumes restantes, sem a menor culpa na alma.

 


[11.7.2007]