Os Pés

Ela falou sobre os pés... mas não eram quaisquer pés; tão pouco eram pés importantes, desses que se acomodam em mãos preparadas para um bom trato. Desses que depois de massagens se acomodam confortavelmente em sapatos reluzentes, imponentes, a caminhar por tapetes e calçadas afamadas. Mas eram uns pés de alguma importância. Afora a importância real que todo par de pés tem para cada um que os possui, graças ao bom Deus. Embora muitas vezes, não conscientemente, eles tenham uma real e fundamental importância. Esses de que ela falava eram uns pés moradores de rua; mas decerto o dono dava-lhes muita importância. No momento que ela viu, lavava-os com uma garrafinha de água mineral. De marca, marca boa. Só não se sabe se o conteúdo da garrafa era original. Enfim que diferença faria à essa altura? O mais importante aqui eram os cuidados. E eram prestimosos cuidados. Ainda depois de lavá-los, creme para os pés. Pés bem cuidados, para enfrentar os caminhos mal cuidados, os caminhos mal conduzidos de sua vida errante, sem porto, sem seguro.

E ela descreveu tão bem acena que eu ia lendo e imaginando, tal qual se fora a visão de um filme. E estabeleci um contraponto com as cenas que vejo constantemente nas caminhadas matinais em local que guarda uma proximidade com a cracolândia da cidade. Sempre me assusto, enojo, penalizo. Não me acostumo a ver pessoas jogadas no chão como se fossem lixo. Os pés que vejo só tem em comum com os que ela viu, o propósito andarilho sem rumo nem prumo. Tanto que, ao serem acossados pelo cansaço, é ali mesmo onde este se manifesta que o corpo vai deitar e tentar se recompor, dar um alento para pés tão castigados, sofridos e maltratados. Pés horrendos e repugnantes, calçados em sapatos que já parecem ser congênitos aos pés, tamanha é a comunhão da sujeira acumulada. Isso, quando ocasionalmente estão calçados. Pés que estão sempre descobertos mostrando suas unhas grandes e sujas ao extremo, porque o agasalho que chega ao acaso, não é suficiente para cobri-los. Pés que atravessam as madrugadas e varam as manhãs ao relento para enfrentar as incertezas do dia seguinte, seguindo sempre igual, desesperançoso, sem perspectiva.