Outra Vez no Hospício
A pesquisa sobre a história da pedagogia na psiquiatria em Barbacena envolveu os companheiros do núcleo interdisciplinar de pesquisa em educação – NIPE – em visitações para observação naquela instituição de saúde mental pública.
A desospitalização estava ocorrendo através de etapas de socialização de pacientes crônicos. Casos chamavam a atenção e vinham à tona reflexos em que a eugenia havia sido aplicada no país no início do século vinte.
Como cinco pesquisadores estavam envolvidos na empreitada de estudar o processo pedagógico que visava transformar o “louco enclausurado” em “cidadão socializado”, cada um dos cinco membros do núcleo de pesquisa ficou responsável por um dia da semana visitar a instituição para apreender a rotina que visava alcançar esta meta que a medicina psiquiátrica mundial agora exigia.
Visitávamos as várias repartições daquela instituição psiquiátrica pública local onde funcionários estavam envolvidos com pacientes em tarefas e práticas que iam além de medicações.
Eu, como membro do NIPE, fui a um centro terapêutico onde se desenvolviam trabalhos manuais. O ambiente lembrava ao de uma escola fundamental pública. O piso era de uma vermelhidão caprichosamente limpo e havia salas. Em uma aprendiam bordados. Em outra, fabricação de bonecos e carrinhos, em outra, desenhos e pinturas. Passado mais de uma década me vem à memória a necessidade da atendente, que me mostrava os trabalhos dos pacientes, em ressaltar cada um como uma mãe se orgulha das primeiras garatujas de seu filho na fase escolar. Realçava o fato também, de naquelas pinturas mais desenvolvidas, com traços definidos, ela insistir em interpretações querendo ver no passado marcas do inconsciente do autor paciente-pintor.
E por falar em “inconsciente” no mundo consciente da loucura outro relato ali chamava atenção e causava perplexidade como urgência para esta desospitalização ocorrer.
Fui conhecer ao que na época era chamado de “fase da casa modular”. Pacientes que passaram por primeiros processos de socialização eram levados para morar nestas casas internas que ficavam em áreas do hospital. Estes pacientes, que antes viviam em dezenas na clausura de seus pavilhões, agora viveriam em número reduzido em torno de seis nestes módulos sob a supervisão de um atendente.
Nestas casas havia cômodos e móveis semelhantes às de uma família imprimindo assim condição pessoal e não mais coletivizada. Havia televisão, fogão, camas individuais e banheiros privativos.
Em uma das residências experimentais, que antecediam as moradias nos bairros da cidade, fui apresentado a uma senhora-paciente, que passara décadas internada nos pavilhões coletivos. Sua história de vida surpreendia.
Contaram-me que esta senhora, enquanto trancada e usuária de uniforme peculiar aos antigos pacientes internos, era considerada muda. Apenas balbuciava alguns sons guturais. No dia em que ela entrou no módulo-lar e percebeu que seria moradora de uma casa em que sua individualidade seria respeitada e que teria pertences – roupas civis, pentes e demais materiais higiênicos pessoais – ela começou a falar e foi contar sua trajetória. Verificada com informações de sua ficha de internação e prontuários comprovou-se a veracidade de sua história.
Ela narrava que tendo se casado muito nova por imposição de seu pai foi morar com a família do marido. Era maltratada por todos. Não aguentando mais, fugiu pretendendo ir para a região de seus familiares. Não tinha noção geográfica de onde era e onde estava. Por isto tornou-se andarilha com apenas a roupa do corpo.
Como a política municipal das cidades desta época era promover a higiene étnica e social – Eugenia – foi presa por seguranças, tida como louca e trazida para o hospício – um dos depositários institucionais para promover a limpeza social comum da época.
Assustada e violentada étnica, social e sexistamente emudeceu-se com a brutalidade daquela sociedade. Agora que os tempos eram outros e ao perceber que “estava em casa novamente” em um ato de catarse passou a falar recuperando sua humanidade e seu Eu consciente para surpresa de todos.
Estas experiências de Campos de Concentração não podem ser esquecidas. Ao fazê-lo nos tornamos tão culpados quanto aquela geração que quis mascarar a sociedade passada e compactuar com suas violências de gênero, étnicas e ideológicas.
A pesquisa sobre a história da pedagogia na psiquiatria em Barbacena envolveu os companheiros do núcleo interdisciplinar de pesquisa em educação – NIPE – em visitações para observação naquela instituição de saúde mental pública.
A desospitalização estava ocorrendo através de etapas de socialização de pacientes crônicos. Casos chamavam a atenção e vinham à tona reflexos em que a eugenia havia sido aplicada no país no início do século vinte.
Como cinco pesquisadores estavam envolvidos na empreitada de estudar o processo pedagógico que visava transformar o “louco enclausurado” em “cidadão socializado”, cada um dos cinco membros do núcleo de pesquisa ficou responsável por um dia da semana visitar a instituição para apreender a rotina que visava alcançar esta meta que a medicina psiquiátrica mundial agora exigia.
Visitávamos as várias repartições daquela instituição psiquiátrica pública local onde funcionários estavam envolvidos com pacientes em tarefas e práticas que iam além de medicações.
Eu, como membro do NIPE, fui a um centro terapêutico onde se desenvolviam trabalhos manuais. O ambiente lembrava ao de uma escola fundamental pública. O piso era de uma vermelhidão caprichosamente limpo e havia salas. Em uma aprendiam bordados. Em outra, fabricação de bonecos e carrinhos, em outra, desenhos e pinturas. Passado mais de uma década me vem à memória a necessidade da atendente, que me mostrava os trabalhos dos pacientes, em ressaltar cada um como uma mãe se orgulha das primeiras garatujas de seu filho na fase escolar. Realçava o fato também, de naquelas pinturas mais desenvolvidas, com traços definidos, ela insistir em interpretações querendo ver no passado marcas do inconsciente do autor paciente-pintor.
E por falar em “inconsciente” no mundo consciente da loucura outro relato ali chamava atenção e causava perplexidade como urgência para esta desospitalização ocorrer.
Fui conhecer ao que na época era chamado de “fase da casa modular”. Pacientes que passaram por primeiros processos de socialização eram levados para morar nestas casas internas que ficavam em áreas do hospital. Estes pacientes, que antes viviam em dezenas na clausura de seus pavilhões, agora viveriam em número reduzido em torno de seis nestes módulos sob a supervisão de um atendente.
Nestas casas havia cômodos e móveis semelhantes às de uma família imprimindo assim condição pessoal e não mais coletivizada. Havia televisão, fogão, camas individuais e banheiros privativos.
Em uma das residências experimentais, que antecediam as moradias nos bairros da cidade, fui apresentado a uma senhora-paciente, que passara décadas internada nos pavilhões coletivos. Sua história de vida surpreendia.
Contaram-me que esta senhora, enquanto trancada e usuária de uniforme peculiar aos antigos pacientes internos, era considerada muda. Apenas balbuciava alguns sons guturais. No dia em que ela entrou no módulo-lar e percebeu que seria moradora de uma casa em que sua individualidade seria respeitada e que teria pertences – roupas civis, pentes e demais materiais higiênicos pessoais – ela começou a falar e foi contar sua trajetória. Verificada com informações de sua ficha de internação e prontuários comprovou-se a veracidade de sua história.
Ela narrava que tendo se casado muito nova por imposição de seu pai foi morar com a família do marido. Era maltratada por todos. Não aguentando mais, fugiu pretendendo ir para a região de seus familiares. Não tinha noção geográfica de onde era e onde estava. Por isto tornou-se andarilha com apenas a roupa do corpo.
Como a política municipal das cidades desta época era promover a higiene étnica e social – Eugenia – foi presa por seguranças, tida como louca e trazida para o hospício – um dos depositários institucionais para promover a limpeza social comum da época.
Assustada e violentada étnica, social e sexistamente emudeceu-se com a brutalidade daquela sociedade. Agora que os tempos eram outros e ao perceber que “estava em casa novamente” em um ato de catarse passou a falar recuperando sua humanidade e seu Eu consciente para surpresa de todos.
Estas experiências de Campos de Concentração não podem ser esquecidas. Ao fazê-lo nos tornamos tão culpados quanto aquela geração que quis mascarar a sociedade passada e compactuar com suas violências de gênero, étnicas e ideológicas.
Leonardo Lisbôa,
Barbacena, 22/03/2016.
Para melhor compreensão deste texto leia também aqui:
http://www.barbacenaonline.com.br/noticia/cronica/um-dia-no-hospicio
http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/5585457
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