A Escrita como Segunda Pele
Teimo em sentir aquilo que não sei decifrar. Assim, meus dias passam pelas voltas do relógio e pelo contorno do tempo, que habita um olhar assustado e ao mesmo tempo intenso e ávido por descobertas. Ouço os passos do coração que acelera a cada pensamento que vaga na orla de minhas divagações. Sucintos ou, complexos e longos os dias transcorrem e carrego em minhas veias a força que pulsa por escrever palavras.
Sento em frente à janela de enormes bordas de madeira maciça e olho o vento soprar como se por ele voassem letras que devo alcançar. Tento apanhá-las com as pálpebras que gesticulam afoitas pela captura do tom. E é neste momento que percebo, aquelas que se vão com o vento não são minhas palavras, mas as de alguém que por certo as abandonou. Entendo, na complexidade da alma de poeta que palavras, ainda que sejam as mesmas, cada um tem as suas e cada uma delas é recheada dos sentidos que queremos dar. Divago e devaneio pelo meu dicionário interno e encontro novas-velhas-palavras, novos- velhos- contos que li em outros tempos, percorro versos e abraço estrofes inteiras com um só toque, com um só lampejo de olhar.
Pelas frestas da janela, porque agora resolvi fechá-la, antes que as palavras de mim se apossassem, entra um rasgo de luz que ilumina o quarto, a ponta da escrivaninha e o espelho que está às minhas costas e, que na parede projeta minha sombra rejuvenescida pelas lembranças que insistem em aparecer. Só observo...e sinto.
Eis que vejo na ponta da caneta e nas linhas que discretas e racionais cumprem seu destino de compor a folha abaixo dos meus olhos, a possibilidade da loucura e do desejo de gritar sentidos, acontecer. A loucura do doce alívio de esparramar o que penso, deslizando trechos de existência nas pautas estilosas do papel alvo que me aguarda. Penso no que me salvaria a vida, o que salvaria o mundo, o que me salvaria de mim mesma!!! E a única coisa que entendo é que preciso escrever. Então começo...sem racionalizar, apenas deixo que elas surjam vindas não sei bem de onde e as liberto. Vem amor, paz, conquista, angústia, desejo, sereno, hóspede e derradeiro, vem não quero e austero, mundo e tabuleiro. T-a-b-u-l-e-i-r-o...Será o jogo de xadrez? Será que eu estou no xadrez, atrás de grades que criei? Ou são as frestas da imensa borda de madeira maciça que faz esta janela parecer uma cela! Será que estou ainda no xadrez do jogo do mundo e, que peça eu sou? Peão, torre, bispo, rainha....sou eu quem jogo? Ou a jogam comigo? Plena e satisfeita pelo anúncio de libertação das letras me comovo em gestos com a caneta. A folha alva de minutos atrás, agora parece a janela, só com frestas de linhas que sobram apenas por instantes, até que mais palavras gritem e clamem por soltura. E lá vem elas, em quantidade absurda! Não sei quantas mais cabem e nem por quanto tempo mais tolerariam permanecerem ocultas! Vem ápice, alheio, devaneio, confuso e poético, um sentido correndo solto se lança na linha reta, para em seguida ter ao seu lado a curva do tempo, sinuosa e misteriosa. Vem segredo, paixão, atônita e ambígua, saltos, movimento, veloz e algoz, reminiscências, pecado, doce pecado. Mais lentas agora, parecem que dançam em minha mente. Um ballet convicto de passos que sabem de sua estrada, convicto que o espetáculo esteve grandioso e impressionante, sem deixar vestígios de fuga, colorindo todo o palco com um brilho deslumbrante de quem soube viver.
Finalmente abro a janela e acaricio a madeira maciça que me protege, certa de que não desejo mais a penumbra, deixo a luz entrar, olho feliz para fora e permito que o vento vá carregando as palavras que não me pertencem...As minhas, apenas as minhas permanecem na minha própria impermanência. Sossego um pouco, e se fosse o caso, poderia morrer agora, vestida das folhas escritas com todas as palavras que conheço como se elas fossem a minha segunda pele me revelando poeticamente para o universo.