Assim ou...nem tanto 38
Como os Anjos
Qualquer um pode, sem sair do seu canto, visitar todos os lugares que lhe apeteçam. É aconselhável ver tudo muito bem visto antes, aprender roteiros, consultar livros, navegar na net e, só depois, em sonho ou de olho arregalado, seguir à aventura. Ver o Papa, tocar as esculturas de Miguel Ângelo e Bernini, entrar no mais escuso dos bairros de Londres, correr na Grande Muralha da China ou, mais modestamente, passear pela porção medieval de Óbidos. Há quem, como Carmélia, tenha aspirações a ver e palpar anjos, voar como dizem que eles voam. Nem lhe interessava tanto a rota do destempero, mas queria voar, sonhava sempre com isso mas a verdade é que os pulos que dava eram curtos para um alçar de voo que jeito tivesse e acordava dolorida, suada, em absoluta estafa, sem memória que a aproximasse do telhado da capela, do campanário da Matriz, ou sequer, do ninho das cegonhas na chaminé da fábrica abandonada. E Celino interpretava o que ela contava, dramatizando os desesperos, chorando quando a história a deixava mais frustrada. Nesta noite, contou, uma das suas asas aparecera mirrada e nem para enfeite servia. Vira o anjo muito perto e ainda pensou que, juntos, talvez pudessem ir a algum lugar das nuvens mas o seu peso era muito para uma só asa e tudo o que conseguiu foi rodar enquanto caía desamparada do telhado da adega para uma meda de trigo. Aguentou-se na queda mas chegou descomposta à palha. Achou que era o anjo a mostrar interesse e, afinal, era só o seu Celino a querer conversa, todo dedos e beliscões, todo abraços e outras investidas. Deixa-te de voos, mulher e arrasta-te por aqui comigo. Talvez a dois seja mais fácil ver o Carrilhão de Mafra, a Cúpula de Santa Engrácia, o que der. Se não conseguirmos, ao menos tentámos, não te parece?