Um pequeno cais
- Não olhe para baixo,siga em frente.
Assim disse minha mãe ao passarmos pela estreita passagem de pedras no cais " del Saporito" ( Sapore é sabor em latim). Abaixo a uns quinze metros, a água verde balançava as pequenas embarcações pesqueiras, enquanto os incansáveis pescadores recolhiam suas amarras, falando alto entre pilhérias, em alegre harmonia de camaradagem, pois entre eles a lealdade é sinônimo de sobrevivência. As aves marinhas sobrevoavam a espera de algum pescado, e os homens gentis a favoreciam, afinal elas faziam parte daquela vida de sal.
Tínhamos que passar em fila indiana, se perdêssemos o pé no limo, cairíamos na água fria do mar, e assim andávamos sobre aquela estreita trilha, com uma das mãos tocando a parede de pedras, e logo abaixo tudo aquilo com tantas cores , sons e cheiros de pesca . Era um corredor que sabe Deus há quanto tempo estava lá, talvez séculos, numa grande construção de enormes pedras úmidas e escorregadias que adentravam pelo mar. Não sei dizer bem o que era , talvez um entreposto , mas não estou bem certo.
A minha mãe se criara ali, e andava com desenvoltura , conhecia a todos ,havia tido uma infância de sobrevivência, trabalho e solidão, desde seus nove anos, na pós guerra, e aprendeu muito cedo que o mar não desampara. Quando a miséria e a falta de víveres fez com que seus pais saíssem para trabalhar em troca de qualquer ganho, às vezes em jornada dupla, ela ainda era pequena e se viu com a casa toda para cuidar, e a fome também a ensinara a nadar e a mariscar caranguejos, e mexilhões.
O meu avô conduzia o bonde ( motorneiro), e a minha avó trabalhava de copeira num hotel. Eram pessoas simples que não sabiam mimar , não havia tempo para essas coisas, a vida lhes endurecera o coração. A minha mãe tentava compensar essa ausência de calor conosco, mas à sua maneira entendia que os homens deveriam crescer sem direito ao medo. Quando dizia , não olhe para baixo e siga, era isso que deveríamos fazer sem contestar.
Quando voltei para a cidade , já homem feito, aquilo tudo já estava bem modificado, ainda se viam pequenos pesqueiros por ali, mas poucos ancoravam, e já não encontrei o pequeno caminho de pedras da minha infância. As fortes recordações congelam as imagens, as palavras, cheiros , e as encerram numa caixinha lá no fundo da memória afetiva.
Todas as manhãs passei a caminhar pela cidade, parava ali , comprava um jornal e tomava um café sentado a relembrar as tantas coisas, e as pessoas me olhavam como se eu fosse um turista, mal sabendo o quanto conhecia daquilo tudo.
Quantas vezes me perguntei se tudo havia acontecido, se não eram sonhos febris, mas a resposta estava lá, bem à minha frente, apenas o tempo é que havia passado, eu não.