O CRISTO DO ASFALTO

O que relato ocorreu num flash de segundos.

No ocaso a tarde caía bem quieta lá no horizonte da estrada que ficara para trás e a intersecção dos nossos caminhos era o mero palco dum ato repetitivo da vida.

Ali, no final da rodovia, aonde o meu sentido já adentrava o perímetro urbano, do outro lado, a poucos metros de mim, um semáforo inteligente lhe contava o tempo regressivo do tudo, metáfora apressada, segundos suficientes para que minha câmera ocular, quase sob um último raio de sol, registrasse a cena daquela paixão de destino tão incógnito, qual um final de tarde duma sexta –feira santa que se ia igualmente a tantas outras .

O protagonista, a metros duma igreja, era só mais um “CRISTO-CRIANÇA”, dessas que os olhos da sociedade, há muito, já não reconhecem como tal.

E senti que santa também lhe era aquela oportunidade de ganhar uns últimos trocados do dia, como tantas outras crianças que nos subseqüentes anos se avolumam pelas ruas, cuja sobrevivência ao descaso caminha ao esmo do nada.

Às vezes, pela condição aviltante das tantas paixões roladas no asfalto, nos é difícil situar o tempo exato do sopro dos seres, todavia, ele devia de ter no máximo um treze anos de luzes ofuscadas e desfocadas.

Trazia no corpo magro dum rosário em contas, de dura linguagem cênica corporal e delatora do tudo, o legítimo palco ao conquistado talento artístico para conversar com os corações, mesmo com os mais indiferentes; e ali nos gritava que era ele uma oração viva dos pedaços das paixões esquecidas, as que esgarçam as trincas dos asfaltos urbanos, espaços humanísticos surreais de hoje em dia.

Meu sentimento não foi ao acaso, afinal, ele era um artista de si mesmo e todo artista nato jamais consegue separar a ebulição de si da de sua arte que ferve no outro.

Ali, ele se derramava em versos altos de dor pela sua perene “auto- crucificação”, paixão em ato contínuo de todos os seus dias.

Relato que assim que o semáforo cronometrava suas horas perdidas, milagrosamente, ele recuperava a força duma fé gritante em oração ao mundo, a soerguer uma cruz pesada, de tamanho bem superior à sua altura, paixão que lhe entortava os ossos mal calcificados; e entronizado por uma coroa de espinhos cravejada no seu pequeno perímetro cefálico, expunha a cena mais metafórica e dolorosa que já pude assistir no teatro das vidas que correm a céu aberto.

De súbito nos distanciamos pelo asfalto e, como numa cortina do tempo que se fecha para sempre, a noite desceu sobre nós num palco que se apagou.

Soube que, naquele teatro que jamais termina, logo viria um novo ato de Paixão a saudar a Ressurreição dum novo dia, no milagre dum sol de Páscoa que nunca se apaga e que sempre urge a todos nós...