A esperança de Camila

Depois de quase duas horas presa num trânsito infernal, Camila chegou em casa às nove da noite e encontrou sua mãe no fogão preparando um caldo verde com couve e bacon, sorrindo e cantando uma canção antiga de João Mineiro e Marciano. O dia de trabalho tinha sido especialmente péssimo para Camila, que se arrastou pela sala até a cozinha como se carregasse o mundo inteiro nas costas. No entanto, ao sentir o cheiro do caldo e ver sua mãe sorridente e alegre junto ao fogão, ela se sentiu tão aliviada e em paz que chorou e abraçou a mãe dizendo mãezinha, mãezinha, que bom que a senhora está aqui, que bom, que bom! E ela chorava como uma criança, pensando na droga da empresa onde trabalhava, no imbecil do seu chefe, no trânsito de merda que era obrigada a enfrentar todos os dias, na vida horrível que levava e na vontade de se matar (que naquele momento desapareceu como num passe de mágica por causa de um caldo e um abraço).

Enquanto sua mãe terminava o caldo, Camila lavou o rosto, pôs um pijama e se olhou no espelho por alguns minutos, forçando o pensamento a se ajustar à realidade: tenho que aguentar, vou vencer, VOU VENCER!

Quando voltou à cozinha, seu caldo já estava na mesa, numa tigela de louça branca, sobre um guardanapo de pano bordado com flores, galinhas e bules de café. Vendo aquilo, Camila resolveu tirar uma foto da cena e postar no Facebook, junto com uma frase padrão de felicidade que ela tinha lido em algum lugar, certamente no próprio Face. Mas seu celular estava com a bateria descarregada e sua mãe nunca quis ter um. Então buscou o carregador no quarto, ligou-o ao celular e, em seguida, na tomada da cozinha. Porém, quando foi iniciar o aparelho, viu que o carregador não estava funcionando. O que fazer? Lembrou-se de outro carregador, que ela tinha como reserva, e foi procurá-lo. Revirou guarda-roupas, cômodas, armários e nada. Onde estaria? Camila precisava postar aquilo no Face, afirmar mais uma vez para seus amigos que ela era feliz, que a sua vida era maravilhosa e bla bla bla. (Ela bem que gostaria que isso fosse verdade, mas se pelo menos lá fora as pessoas acreditassem, já estaria muito bom).

Tenho que aguentar, vou vencer, dizia Camila para si enquanto procurava o carregador reserva. Demorou meia hora para achá-lo. Ligou-o ao celular etcétera e tal, e quando finalmente conseguiu tirar a foto e postá-la, o caldo já estava frio, esbranquiçado, e sua mãe não mais a esperava para uma conversa antes de dormir, vencida pelo sono. Camila então colocou o caldo no micro-ondas. Deixou-o cinco minutos na potência máxima (tempo demais!) e, ao retirá-lo, queimou os dedos, soltando a tigela, que se espatifou toda no chão. Foi a maior bagunça.

Resultado: meia hora de choro sentada no chão da sala reclamando da vida (de novo com vontade de se matar) e noventa e três curtidas no Facebook.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 26/03/2016
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